A região oeste do Estado de São Paulo foi palco de um processo histórico de ocupação predatória, baseado na grilagem de terras, que resultou no desmatamento quase total da Grande Reserva do Pontal para extração de madeira, plantio de algodão, café e pastagens. Esse processo foi possível graças à omissão do Estado, que garantiu impunidade aos grileiros. Agora, a omissão dá lugar à ação, mas não com o objetivo de corrigir a desigualdade social e a degradação do meio ambiente resultantes da apropriação indevida de terras devolutas. O que o governo fará é legalizar a grilagem, premiando os responsáveis por essa triste realidade. Esse é o verdadeiro propósito do projeto de lei 578/2007, encaminhado recentemente pelo governador José Serra à Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo.
O problema que o governo do Estado supostamente quer resolver remonta a 1856, data-limite para a legitimação das áreas ocupadas antes de 1850, quando então foi promulgada a Lei de Terras. As terras não registradas e legitimadas neste prazo foram consideradas devolutas, ou seja, por não serem requeridas, deviam ser devolvidas ao patrimônio Público. Na região do Pontal, a regularização da posse de duas fazendas (Pirapó-Santo Anastácio e Rio do peixe ou Boa Esperança do Aguapeí), no final do século XIX, não foi reconhecida pelo Estado, frustrando uma tentativa de transformar o grilo em propriedade privada. A Concentração de terra originada nesses dois grandes grilos transformou o Pontal do Paranapanema em uma das regiões de maior conflito fundiário do Brasil.
A proposta do governo Serra agora se baseia em três falácias: a de que a regularização das terras trará desenvolvimento por meio de investimentos privados, superará o histórico conflito fundiário e arrecadará terras para o assentamento de trabalhadores sem terra. Basta uma rápida reflexão para demonstrar como esses argumentos não se sustentam:
Não trará desenvolvimento: ao consolidar uma estrutura fundiária altamente concentradora da propriedade da terra, o projeto vai estimular atividades igualmente concentradores de renda. Em vez de efetuar investimentos públicos que garantam o desenvolvimento sustentável e a inclusão social na região, o governo apenas favorece a tendência de expansão da monocultura canavieira, atividade caracterizada pelo pouco uso de mão-de-obra (colheita mecanizada), aumento da exploração do trabalho e aumento da exclusão social. O estímulo à expansão da cana-de-açúcar no pontal sob o pretexto do Pró-Álcool já foi tentado pela ditadura militar e deixou de herança graves conflitos fundiários e distorções sociais, que o projeto atual tende a agravar.
Não superará o conflito fundiário: a regularização da propriedade das terras para os atuais ocupantes será a legalização da grilagem em detrimento da possibilidade de democratizar o acesso à terra, dando oportunidade de trabalho e renda a milhares de famílias de trabalhadores rurais. É uma solução autoritária, elitista e excludente, que perpetuará o problema das famílias expulsas do campo em meio ao processo de êxodo rural e que já não encontram oportunidades de trabalho nas cidades. O projeto, portanto, só fará aumentar os conflitos existentes.
Não arrecadará terras para o assentamento de trabalhadores rurais: a contrapartida exigida para a regularização das áreas dos grileiros é o repasse de uma pequena parte ao Estado - entre 15% e 25%. O projeto, no entanto, oferece a alternativa de pagamento a dinheiro, com base no valor da terra nua, que certamente será mais vantajosa para os fazendeiros: com a expansão do setor sucroalcooleiro na região, o arrendamento das terras para o plantio de cana garantiria o pagamento dessa devida parte ao Estado. Sobretudo com a possibilidade de parcelamento em até 72 vezes, conforme prevê o projeto. Acordos com latifundiários com repasses tão pequenos já foram tentados na década de 1980 pelo Governo Estadual, regularizando milhares de hectares na região do pontal, mas as terras daí obtidas permitiram o assentamento de apenas 150 famílias em quatro anos. O atual projeto de lei, que traz vantagens bem maiores para os grandes fazendeiros, tende a um resultado ainda mais pífio.
Como se não bastasse a fragilidade das justificativas apresentadas pelo governo, este tenta responsabilizar o poder judiciário pelo conflito fundiário existente na região, colocando-se como garantidor da ordem jurídica. Entretanto, o projeto de lei peca no que diz respeito à sua legalidade e constitucionalidade.
Primeiramente, no que diz respeito a "regularizar" a posse de pessoas em terras declaradamente devolutas: não é possível ao particular adquirir propriedade de imóveis públicos meramente pela posse, especialmente nessa extensão (Constituição Federal). Com isso, a única maneira de um particular adquirir a propriedade de bem público é pela compra, pela modalidade licitatória leilão (artigo 37 da CF e lei 8666/93).
No que diz respeito às terras presumivelmente devolutas, ou seja, aquelas cuja propriedade está sendo discutida entre o Estado e um particular, o projeto de lei busca pôr fim ao processo de forma atabalhoada, com a legalização de um acordo contrário ao interesse público. Sabemos que o poder público, por defender um interesse que não é do Governo, mas de todos os cidadãos, não pode abrir mão de suas demandas, sendo obrigado a recorrer de sentenças que lhe são desfavoráveis. O acordo só seria possível para beneficiar o interesse público, o que não é o caso na legalização da grilagem.
Some-se a isso o fato de que ambas as possibilidades de regularização previstas no projeto são inconstitucionais, visto que o artigo 188 da Constituição determina que "a destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária".
Além de afrontar a Constituição Federal, a Lei 8666/93, não atende ordem da Constituição Estadual, desprezando o artigo 187, o projeto do governo Serra também se insurge contra o principio do artigo 177 da CE: "O Estado estimulará a descentralização geográfica das atividades de produção de bens de serviços...".
A pacificação e o desenvolvimento da região só serão possíveis se construídos considerando os reais interesses da sociedade que, ao contrário do que alega o governo, nunca foi chamada para contribuir neste debate. Para ter a dimensão do impacto social dessa proposta, observe-se que estão em discussão na justiça, de acordo com informações do próprio governo do Estado, aproximadamente 300 mil hectares de terras irregularmente em poder de particulares no Pontal do Paranapanema. Esta área permitiria o assentamento de 60 mil pessoas (15 mil famílias).
Frente a essa realidade, repudiamos o PL 578/2007, por aprofundar as desigualdades e os conflitos da região do pontal coma oficialização da grilagem e da concentração de terras. Entendemos ser papel do Estado a democratização doa cesso à terra como garantia dos direitos fundamentais á moradia, alimentação e trabalho.
A manutenção deste projeto de lei consolidará uma traição aos princípios de justiça e democracia.
* Documento apresentado aos participantes da Audiência Pública realizada no dia 10/08/2007 na Câmara de Presidente Prudente - SP
Plínio de Arruda Sampaio - presidente da ABRA
Sônia Helena Novaes Guimarães Moraes - Vice-Presidente da ABRA
Bernardo Mançano Fernandes - geógrafo - UNESP
Raul Marcelo - Deputado Estadual - PSOL
Simão Pedro - Deputado Estadual - PT
(
Adital / Enviado por Paulo Fernando da Silva - CPT e PcdoB de Tarabai/SP, 13/08/2007)