Se os líderes do MST não gostassem tanto de ouvir a música de suas próprias vozes recitando slogans, usariam como propaganda da reforma agrária a paisagem que o biólogo Laury Cullen vai descrevendo com o mínimo de palavras, enquanto roda pelo labirinto de estradas rurais no Pontal do Paranapanema.
É um lugar que, há menos de um século, os mapas do Estado de São Paulo ainda apontavam como terra incógnita. Teodoro Sampaio, a sede do município, leva o nome do engenheiro que explorou aqueles sertões dos caingangues lá pelo fim do 2º Reinado.
Suas florestas resistiram, até a década de 40, como vasta reserva que o governo Adhemar de Barros deixou grilar nos anos 50 - para abastecer com a fuligem de madeira nativa os motores de uma campanha gorada à presidência da República, diz a lenda.
O saldo da conquista estabanada perpetuou-se numa insolúvel confusão fundiária, espetando na informalidade jurídica imensas fazendas abertas na mata sem título de propriedade e com desprezo pelo Código Florestal. Sua força vem do gado, que nesta época do ano salpica os pastos cor de palha com o branco meio imóvel dos bois de corte e atravanca as ruas de Teodoro Sampaio com a procissão de carretas a caminho do matadouro.
Foi por conta da grilagem original que os sem-terra puseram o Pontal no front da reforma agrária. Nem tudo ali se pode chamar de latifúndio improdutivo. Há colinas plantadas com capim em curvas de nível ao lado de charrascais invadidos pelo cupim, com troncos de ipês desfolhados,mas renitentes, que as queimadas não conseguiram botar no chão.
Em comum, além do passado inconfessável, os bons e maus pioneiros do agronegócio local têm a mesma penúria de árvores. Não é à-toa. São ambos filhos do mesmo desmatamento.
Qualquer forasteiro pode constatar a olho nu que praticamente ninguém ali está em dia com suas suas cotas de proteção permanente e reservas legais.
É onde entra o trabalho de Cullen. Ele chegou a Teodoro Sampaio há 20 anos, como pesquisador no Morro do Diabo, último retalho do parque ainda nas mãos do governo. Sobraram 30 mil hectares, cercados de arame farpado por todos os lados e rasgados por uma rodovia, em que os sobreviventes da fauna nativa morrem atropelados. Mas tem lá suas larguezas, como cerca de 800 micos-leões-pretos, durante muito tempo dados por extintos, e uma população de onças que não pára de aumentar.
Cullen está no Pontal por causa dos animais. Mas, para não perdê-los de uma vez por todas, trabalhando no Instituto de Pesquisas Ecológicas, ele teve que aprender a lidar com gente.
Convenceu fazendeiros a abrir alas em suas terras para os bichos que transitam entre o Morro do Diabo e os míseros fragmentos florestais da borda do Paranapanema, plantando corredores de árvores nos campos descobertos.
E, o que parecia ainda mais difícil, fechou com assentados, que antes só conheciam o parque como território da caça clandestina, um pacto de não-agressão que rendeu, entre outros efeitos, 22 viveiros de mudas cultivados pelos sem-terra. Hoje, quando os fazendeiros precisam de árvores, compram nos assentamentos.
Cullen trata de não tomar partido na política do Pontal. E sabe que, com grandes fazendeiros ou pequenos assentados, o boi criado solto só difere pela raça e a extensão das cercas. Mas bastam alguns quilômetros de estrada para aprender que, ali, pelo menos do ponto de vista de quem vive da natureza, como onça ou ambientalista, a profusão de sítios sombreados por árvores frutíferas faz uma espantosa diferença
(Por Marcos Sá Corrêa,
O Estado de S.Paulo, 15/08/2007)