As crateras de terra com cerca de 60 metros de profundidade são os primeiros sinais vistos da estrada por quem se aproxima de Poconé, cidade mato-grossense de 30 mil habitantes considerada porta de entrada do Pantanal. Para a maioria dos visitantes, as imensas cavas a céu aberto parecem abandonadas, mas escondem o trabalho de máquinas e caminhões em ritmo acelerado, que só param em dia de finados e em 1º de janeiro. Três turnos, dois mil empregados e a extração de 200 quilos de ouro por mês fazem do garimpo, ainda hoje, o principal pilar da economia do município.
O negócio se sustenta às bordas do Pantanal desde os anos 80, quando na total ilegalidade, a cidade chegou a abrigar mais de uma centena de cavas e 10 mil garimpeiros que se utilizavam principalmente do mercúrio para identificar o vil metal. Hoje, a cooperativa que agrega os 17 garimpos poconeanos garante que o uso do mercúrio é feito em sistemas fechados e a perda para o ambiente é inferior a 5%, aceitável pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). No entanto, o que se fez até o início do processo de regularização dos garimpos, em 1996, nos solos, nas águas e no ar de Poconé ninguém ainda conseguiu avaliar, pois jamais foi realizado um estudo detalhado sobre esse passivo ambiental. Apenas em março deste ano, pela primeira vez começaram a ser mapeados e mensurados os prejuízos ao meio ambiente depois de quase 30 anos de atividade garimpeira. E os resultados desse projeto ainda estão longe de sair.
Técnicos da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), cooperativa de garimpeiros, DNPM, Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) e Ministério Público começaram a fazer perícias em 14 áreas de garimpo abandonadas, onde têm sido encontradas altas concentrações de mercúrio. “Por mais que não saibamos quanto, o passivo realmente existe. Como não dá para destruir o mercúrio, as áreas onde ele for encontrado na forma superficial devem ser isoladas com cercas para evitar contaminação”, diz o químico Edinaldo Castro e Silva, da UFMT. Segundo o pesquisador, se ele estiver enterrado no solo é melhor que ninguém o revolva, para que o material contaminado não fique exposto a intempéries. “Se começarmos um trabalho de descontaminação haverá outras conseqüências como esterilização do solo e desertificação, o que pode até piorar a situação atual”, explica.
Acumulação pontual Entre 2002 e 2005, um projeto custeado pelo Banco Mundial permitiu que pesquisadores da UFMT fizessem um levantamento por toda Bacia do Alto Paraguai em busca de possíveis pontos de acumulação de mercúrio. Foram analisadas amostras de solo, sedimentos em fundo de baías e peixes. De acordo com Castro e Silva, apenas três pontos revelaram dados preocupantes. “Encontramos altas concentrações em sítios de Poconé, onde por existir garimpo é a fonte principal de mercúrio. E também na baía de Siá Mariana, no município de Barão de Melgaço, e na localidade de Morrinhos, no rio Paraguai, entre a cidade de Cáceres e a Estação Ecológica Taiamã”, revela o pesquisador.
Morrinhos foi uma incógnita, pois não há movimentos relevantes de ventos que pudessem ser responsáveis pelo transporte aéreo do mercúrio liberado em Poconé. “Descobrimos que no século XIX houve algum desastre com mercúrio e a região ficou carregada. Lá, os peixes apresentam nível de contaminação significativo”, diz.
O caso da baía de Siá Mariana foi diferente. Ela apresenta águas mais ácidas e por isso funciona como captadora e acumuladora de mercúrio proveniente de Poconé, que foi transportado pelo ar e precipitado ali. Aquelas características facilitaram a transformação do metal em dimetil-mercúrio, que pode ser assimilado por peixes e entrar na cadeia alimentar.
No entanto, o pesquisador imagina que a possibilidade de contaminação por ingestão de peixes com mercúrio seja muito pequena. “Já fizemos avaliações psicológicas, de sangue, urina, leite materno e fio de cabelo nas populações ribeirinhas e não encontramos grandes teores que justificassem ações de mitigação”, diz Castro e Silva. Para ele, essas são situações consideradas pontuais e pouco significativas perto do grande número de garimpos que existiu em Poconé e graças à dispersão do metal em uma área muito ampla. “Fora dos pontos de contaminação não são encontrados grandes teores porque o solo é pobre, com pouca matéria orgânica, sem características muito propícias à acumulação do metal pesado”, explica.
Garimpos no século XXI Hoje, apesar de alguns relatos de acidentes fatais envolvendo crianças nas crateras, a população de Poconé já se acostumou à presença das cavas. A prefeitura inclusive recebeu de Sergio de França, um dos maiores proprietários da região, uma área de 13 hectares degradada por garimpo bem no centro da cidade. Em 2005, com apoio do governo do estado, resolveu transformar aquilo em parque temático, com área de lazer e viveiros para desenvolvimento de mudas que são cedidas para recuperação de vegetação em outros garimpos do município.
André Molina, presidente da cooperativa de garimpeiros, acha que as áreas de exploração em Poconé não apresentam riscos ao Pantanal porque estão longe das áreas inundáveis. “Os garimpos estão a 30 ou 40 quilômetros de lá para causar algum impacto”, diz o geólogo. Tanta certeza vem da crença nos procedimentos de controle ambiental atualmente aplicados por lá.
A partir de 1996, os garimpos passaram por um processo de regularização, sujeitos então a controles ambientais rígidos. De acordo com Molina, todos depositam rejeitos em barragens de contenção, e descarregam cerca de 30% do solo removido dentro das crateras para acelerar o processo de recuperação topográfica. Os taludes também precisam ser reflorestados, óleos e graxas controlados e erosão contida. Toda a água das crateras, aflorada do lençol freático, é aproveitada dentro dos garimpos e chegou a ser oferecida à prefeitura de Poconé. “A cidade tem graves problemas de abastecimento, apesar de tanta água no Pantanal. Nós já quisemos fornecer a água das cavas para a prefeitura, mas ela não aceitou”, lembra Molina. “Hoje os garimpos de Poconé são um modelo. Quem dera se todos do país fossem assim”, opina Jocy Gonçalo de Miranda, diretor regional do DNPM em Mato Grosso.
Poderia ser mais, se o mercúrio tivesse fora da jogada. Molina explica que já se cogitou substituir o mercúrio pelo cianeto, que tem propriedades biodegradáveis e uma eficiência ainda maior na recuperação do que é ouro nas amálgamas coletadas. “O problema é que enquanto o mercúrio mostra o resultado em no máximo 1 hora, o cianeto o apresenta em 72 horas. Isso inviabiliza a nossa atividade porque o garimpeiro não pode esperar três dias para saber se aquele pedacinho de terra tem ou não ouro”, diz o presidente da cooperativa. E tem que ser assim, de pouco em pouco, para saber onde estão as jazidas.
De acordo com Miranda, do DNPM, só dá para explorar ouro nas bordas do Pantanal na forma de garimpo porque é impossível realizar pesquisas para localização de reservas do mineral. “Tecnicamente não há como estimar a quantidade de ouro numa jazida em toda baixada cuiabana porque o ouro aparece em veios de quartzo. Esses veios preencheram fraturas na rocha, portanto têm distribuição aleatória. É por isso que grandes empresas mineradoras que tentaram investir em pesquisas aqui desistiram”, explica.
Miranda afasta a possibilidade de uma nova corrida pelo ouro devido ao bom preço negociado pelo mercado porque em Poconé não existem áreas devolutas. “Nessa região, todas as terras já estão requeridas para garimpagem. E o proprietário é também o dono do garimpo”, diz. Dentro da lei, cada um dos 17 garimpos ativos de Poconé produz uma média de 350 gramas de ouro por dia. O que garante aos proprietários cerca de 280 mil reais por mês. Segundo Molina, o metal é vendido para joalherias, indústrias, mas viram sobretudo, ativos financeiros.
A vegetação, que já cobre mais da metade dos garimpos abandonados, sugere que a natureza esteja se encarregando com sucesso da recuperação dos danos passados. Mas sob as árvores pode haver muito mercúrio, que, em áreas não delimitadas e desprotegidas, corre o risco de ser lembrado quando novos estragos estiverem em curso.
(Por Andreia Fanzeres,
OEco, 14/08/2007)