A preocupação quanto à qualidade da água consumida vem de muitos séculos, desde que se constatou que a distribuição de água contaminada é capaz de provocar destruidoras epidemias. Em Londres, em meados do século XIX, por exemplo, uma intensa epidemia de cólera ocasionou a morte de muitos ingleses e, pela primeira vez, foi mostrado cientificamente o papel da água de consumo humano na veiculação do então chamado “veneno da cólera”, que hoje se sabe ser uma bactéria – o Vibrio cholerae.
A água distribuída pelos órgãos responsáveis pela prestação do serviço, e por nós consumida, deve respeitar determinados padrões de qualidade, estabelecidos por portaria do Ministério da Saúde, denominados de padrão de potabilidade.
Os riscos à saúde decorrentes da ingestão de água têm basicamente duas naturezas: os riscos biológicos e os riscos químicos. Os primeiros são representados por microrganismos, como bactérias, vírus e protozoários. Sua ingestão em quantidade suficiente pode provocar doenças nas pessoas e em populações, que em geral têm um caráter agudo, ou seja, de resposta imediata após essa ingestão e em geral na forma de enfermidades de curta duração, como as diarréias. São motivo de grande preocupação, especialmente em populações mais vulneráveis, como crianças, idosos e doentes. A saúde infantil é particularmente motivo de atenção, pois a ocorrência freqüente de doenças infecciosas em crianças pode levar a conseqüências graves em seu desenvolvimento.
Os riscos químicos são representados por substâncias como metais pesados, solventes e agrotóxicos e o limite de sua concentração admissível na água é função dos chamados efeitos crônicos na saúde, ou seja, aqueles efeitos que podem ser observados anos após consumo permanente de água com a presença da substância em questão.
Em relação aos riscos biológicos, objeto deste artigo, a pergunta seria: como termos segurança de que a água é inofensiva à saúde dos consumidores?
A resposta não é simples.
Primeiramente, não se trabalhe com o conceito de “água inofensiva”. Toda a água consumida – bem como alimentos, prática de esportes, lazer... – oferecem algum nível de risco à saúde. Em vista disto, tem se trabalhado com o conceito de “água que não represente um risco inaceitável”. Mas como definir “risco aceitável”? De que forma a ciência determina esse nível – de aceitabilidade? Na verdade, este não é um conceito que tenha puramente uma base científica, mas um conceito que se baseia na noção de risco socialmente aceitável. Por exemplo, na regulamentação sobre a qualidade da água nos EUA, adota-se como aceitável, para a diarréia por Cryptosporidium - um protozoário -, que uma em cada 10.000 pessoas possa ter um episódio de diarréia por ano, o que implica um limite muito baixo da presença desse protozoário na água de consumo.
Outro ponto seria: como verificar se a água tem um nível seguro de microrganismos que podem provocar doenças – os tecnicamente chamados microrganismos patogênicos ou simplesmente patogênicos? Para isto, realizam-se análises laboratoriais. De quais microrganismos? Todos? Não, seria impraticável.
A solução desde há muito encontrada é a de trabalhar com os chamados microrganismos indicadores. Dentre estes, o mais conhecido é o grupo coliforme, que são bactérias excretadas nas fezes humanas. De forma muito simplificada, o raciocínio envolvido no uso dos coliformes seria que a ausência desses organismos na água para consumo humano é indicativa da ausência de outros patogênicos.
Mais recentemente, tem se constatado que essa afirmativa não é completamente verdadeira. A ausência de coliformes indica uma relativa segurança quanto à ausência de bactérias patogênicas, que se comportam de forma semelhante aos coliformes. Contudo, sua ausência não é igualmente segura quanto a outros patogênicos – especialmente os vírus e os protozoários – pois estes têm comportamento muito distinto.
Isto traz preocupações especiais quanto a esses microrganismos. Além do mais, porque o custo para analisá-los na água é muito elevado, sendo impraticável no presente estágio tecnológico, inclusive dos países desenvolvidos, detectá-los rotineiramente na água, tal como se faz com os indicadores. E mesmo que essas análises fossem realizadas, elas não seriam capazes de captar a variação da presença desses patogênicos na água. Raciocinando para uma situação otimista, admitamos que fosse realizada uma análise de protozoários a cada hora na água de Belo Horizonte, coletando para isto um (grande) volume de 10 litros para cada análise. Estaríamos, dessa forma, analisando apenas 0,0000001% de toda a água consumida na cidade!
O meio científico tem se debruçado sobre esta interessante questão da garantia da segurança da água. E algumas medidas indiretas têm sido pensadas e adotadas. Uma delas é o uso de um conjunto maior de indicadores. Não apenas as bactérias coliformes como outros indicadores biológicos, mas também indicadores físicos, que revelam entre outras coisas a qualidade com que o tratamento da água foi realizado.
Outro conceito que tem se fortalecido é o das “boas práticas no abastecimento de água” (ver publicação do Ministério da Saúde sobre o tema no endereço http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/boas_praticas_agua.pdf), que traz o princípio de que quanto mais cuidadosa, preventiva e tecnologicamente adequada é a operação do sistema de abastecimento de água, menores são os riscos à saúde por ele provocados.
Em síntese, as preocupações mais recentes com os riscos de adoecer devido à ingestão da água resgatam um princípio de há muito defendido pela engenharia sanitária: a fundamental preocupação com a boa operação dos sistemas. Em outras palavras, em se tratando do abastecimento de água, tão importante quanto investir em tecnologia e em obras, deve se investir na capacitação e motivação do capital humano, responsável pela rotina de sua operação. E, sobretudo, investir em políticas públicas que garantam que esses serviços tenham qualidade, estabilidade e sejam sustentáveis no tempo.
(Por Léo Heller, Estado de Minas, 10/08/2007)