A bordo de pequenos barcos a motor onde não cabem mais do que seis pessoas, a uma velocidade de 25 quilômetros por hora e com vento gelado no rosto nos primeiros e nos últimos momentos de sol, pesquisadores amantes de aves se lançaram numa expedição pelos rios do Pantanal mato-grossense no final do mês de julho para uma atividade para lá de prazerosa. Com binóculos, guia de campo, lápis e prancheta nas mãos, eles se propuseram a contar e a identificar cada ave que cruzava seu percurso, numa atividade voluntária de reconhecimento das populações que vivem ou visitam áreas úmidas.
O censo de aves aquáticas é uma iniciativa consagrada desde 1967 e acontece em diversas áreas úmidas do mundo sob a organização da ONG Wetlands International. Ela é quem dita a metodologia para a contagem, mas não oferece nenhum tipo de suporte técnico ou financeiro para a realização do trabalho. A instituição recebe os relatórios e graças a eles são feitas análises sobre a saúde das populações de aves nesses ambientes, alterados ou não. Na América do Sul, desde 1990 voluntários têm fornecido esses dados. Mas no Brasil, este ano foi a primeira vez em que a atividade esteve conduzida de maneira mais sistematizada, com observação de uma equipe maior de profissionais e em um importante corredor de unidades de conservação no Pantanal de Mato Grosso.
Em 2001, o orinitólogo Dalci de Oliveira, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), começou a fazer praticamente sozinho o censo ao longo da rodovia transpantaneira. A estrada-parque de 140 quilômetros liga a cidade de Poconé ao Porto Jofre, onde a visualização de aves aquáticas do Pantanal é uma das melhores. Não à toa, este ano o trajeto foi repetido. “A transpantaneira apresentou maior riqueza de espécies (37) e maior número de indivíduos (2283) por ser o ambiente mais heterogêneo, com baías, córregos, rios de pequeno porte, área seca, etc.”, esclarece Rafael Valadão, biólogo do Ibama que por conta própria também conta aves, três vezes por mês, na Estação Ecológica da Serra das Araras, onde trabalha. Segundo ele, por haver muitos ambientes degradados na região, os animais atendem a se concentrar nos alagados bem próximos à rodovia, ainda mais agora na época de seca em que os peixes não ficam espalhados por grandes áreas.
Valadão e outros pesquisadores participaram da primeira etapa deste Censo Neotropical de Aves Aquáticas em fevereiro, quando o Pantanal estava inundado, bem diferente de agora. Na ocasião foram contabilizados 3.100 animais, sendo 222 na transpantaneira. A idéia é avaliar as populações de aves na cheia e na seca, já que nesses dois períodos diferentes animais aparecem pela região. “Com a formação de praias nos rios, esperamos encontrar desta vez gaivotas e talha-mares, por exemplo”, diz Valadão.
Além da transpantaneira, no início do ano uma parceria entre universidade, Secretaria Estadual de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema), Ibama e Ecotrópica permitiu que as observações fossem feitas também no trajeto de cerca de 150 quilômetros de barco do Porto Jofre até a sede do Parque Nacional do Pantanal. E também em baías e áreas do rio Paraguai próximas às Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) administradas pela ONG. A intenção dos pesquisadores foi repetir as mesmas áreas e ampliar um pouco mais. Por isso trechos do rio Piquiri que passam pelo Parque Estadual Encontro das Águas também foram incluídos no censo de julho e mais uma investida do Ibama vai percorrer nos próximos dias áreas no entorno da Estação Ecológica Taiamã. “Queremos da próxima vez navegar por outros rios e também chegar até o Parque Estadual do Guirá”, diz Fátima Sonoda, bióloga da Sema.
Diversão e atenção Animada com a atividade, Fátima diz que para participar do censo é preciso ter alguma experiência com identificação de aves. “Mas para a gente isso é uma paixão, um hobby”, revela. O conhecimento técnico é essencial para que seja possível reconhecer corretamente as aves à distância, paradas ou voando, sendo que o carro ou o barco estão sempre em movimento. “Eventualmente paramos para observarmos melhor ou em caso de dúvida”, explica. De manhã cedo ou no fim da tarde, o sol também pode atrapalhar a enxergar os animais, principalmente suas cores.
Nomes populares, científicos e o reconhecimento rápido do tipo de vôo e até da postura dos animais têm que estar afiados. Afinal, quando dezenas ou centenas de aves de diferentes espécies resolvem alçar vôo ao mesmo tempo, os observadores têm poucos segundos para anotar quantas e quais eram. Fácil não é, mas muito divertido. Para marinheiros de primeira viagem, ao acompanhar uma pesquisa dessas dá para ampliar e muito o conhecimento sobre aves ao entender as diferenças na identificação de socós-dorminhocos, socozinhos, socó-bois, cafezinhos, biguás, biguatingas, maguaris, colhereiros, martins-pescadores, cabeças-secas, tuiuiús, tabuiaiás, gaviões-pretos, belos, caramujeiros, garças-brancas pequenas, grandes, reais e boiadeiras, além de muitas outras aves típicas do Pantanal.
Embora essas populações não sejam novidade para a região, os pesquisadores precisavam atentar também para espécies raras. Segundo Valadão, desta vez eles viram o gavião-pega-macaco (sizaetus tyrannus), uma ave extremamente ameaçada de extinção. De acordo com os pesquisadores, houve ainda orientação especial para observação de aves migratórias por causa da dispersão de doenças como a gripe aviária. Mas, por enquanto, o comportamento das populações tem sido considerado normal.
Melhoria nos resultados Com exceção das áreas próximas à Estação Ecológica Taiamã, que ainda não foram observadas no período de seca, os pesquisadores contaram nos trajetos percorridos 5.007 indivíduos de 44 espécies. Mas a partir dessas informações não é prudente tentar estimar o tamanho real das populações no Pantanal. De acordo com Oliveira, a comparação sobre diminuição ou aumento dos animais só pode ser feita em cada um dos percursos. “Para fazer inferências sobre aumento e diminuição das aves teríamos que analisar outros parâmetros bióticos e abióticos, como profundidade dos corpos d’água e interferências do ser humano”, explica o especialista. Segundo Valadão, hoje o monitoramento por área dura cerca de quatro horas, quando o ideal seria repetir a atividade mensalmente, por um total de 60 horas. “Assim existiria confiabilidade de verificarmos 80% das espécies da área”, diz o analista do Ibama. “Teremos de esperar mais oito ou nove anos para podermos analisar se está havendo mudanças nas populações observadas”, diz ele.
O censo pode ser realizado por voluntários em áreas úmidas de todo o país, desde que orientado pela Wetlands International. Em Mato Grosso, por falta de gente especializada, esse tipo de pesquisa não tem sido feita em outros ambientes inundados. “Nossa idéia é ampliar o censo para mais áreas de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul para que seja possível traçar diagnósticos. É muito importante que as instituições dos dois estados falem a mesma língua e estabeleçam pontos de observação para criar políticas de conservação no Pantanal”, diz Oliveira. Bom seria começar pelo fim de uma rixa velada entre os dois estados, que têm em seus territórios ambientes naturais particularmente incríveis e até hoje não conseguiram construir políticas públicas unificadas para cuidar dele.
(Por Andreia Fanzeres,
OEco, 10/08/2007)