O capitalismo, mais uma vez, está em mudança, naquilo que Schumpeter chamou de ‘destruição criativa’. Segundo Martin Wolf, do Financial Times, é o capitalismo, e não o comunismo, o gerador do que o comunista Leon Trótski denominou de ‘revolução permanente’. O relativo fracasso do período neoliberal, hoje criticado em seus fundamentos até por seus formuladores, abriu espaço para dois fenômenos que estão no centro da mutação: a financeirização da economia mundial e a transnacionalização definitiva da economia, com fusões e mega-fusões empresariais de números cada vez mais espetaculares. Segundo Wolf, "o que temos é o triunfo do mundial sobre o nacional, do especulador sobre o administrador e do financista sobre o produtor. Estamos testemunhando a transformação do capitalismo gerencial de meados do século XX num capitalismo financeiro mundial" (Wolf, Novo capitalismo financeiro provoca revolução global, Valor Econômico, 28.06.07, A14).
Várias seriam as razões e explicações do que está acontecendo: 1) o volume de recursos financeiros explodiu: a proporção de ativos financeiros mundiais em relação à produção anual disparou de 109% em 1980 para 316% em 2005 - o estoque mundial de ativos financeiros principais totalizou US$ 140 trilhões em 2005;
2) o mundo financeiro tornou-se bem mais centrado em transações: os mercados de capital executam cada vez mais as funções do sistema bancário;
3) uma série de novos produtos financeiros complexos foram derivados dos tradicionais títulos, ações, commodities e câmbio;
4) surgiram novos atores, especialmente fundos de hedge e fundos privados de investimento em participações: há dois centros financeiros internacionais dominantes, Londres e Nova York, mais Hong Kong na Ásia;
5) o novo capitalismo está cada vez mais globalizado: a soma dos ativos e passivos financeiros internacionais em poder de residentes em países de alta renda deu um salto de 50% do PIB agregado, em 1970, para 100% em meados dos anos 1980 e para cerca de 330% em 2004.
Neste contexto, é cada vez mais fácil empresas serem adquiridas ou fundirem-se com outras. O valor total envolvido em fusões e aquisições em todo mundo em 2006 foi de US$ 3,861 trilhões, com 33.141 transações individuais. Há dez anos, 1995, o valor foi de US$ 850 bilhões, com apenas 9.251 negócios fechados. O foco voltou-se para contratos explícitos, em vez de implícitos, para contratos e acordos centrados exclusivamente em interesse financeiro, em vez de relacionamentos de longo prazo. Compra hoje, vende amanhã, pois o que se quer é apenas o lucro. Assim, o capital financeiro global está minando a autonomia do capital nacional.
No caso brasileiro, com a estabilidade econômica e o excesso de liquidez internacional no mercado, os empresários brasileiros foram às compras no primeiro semestre de 2007 e adquiriram praticamente uma empresa por dia nesse período (O Globo, 23.07.07, p.19). Houve nada menos que 167 atos de concentração de grupos nacionais, recorde que representa 67% de aumento em relação aos seis primeiros meses de 2006. A maior parte das aquisições no país foram realizadas por grupos nacionais ou com capital majoritariamente brasileiro. Nos anos 1990, o movimento era exatamente o contrário: dois terços das aquisições do país eram de estrangeiros comprando empresas brasileiras. Como exemplos mais vistosos do fenômeno atual: Petrobrás, Ultra e Braskem adquirem, por US$ 4 bilhões, o Grupo Ipiranga; o frigorífico JBS-Friboi adquire a Swift, US$ 1 bilhão; Vale do Rio Doce adquire a AMCI HÁ, US$ 0,6 bilhão; Votorantim a Acerías Paz Del Rio, por US$ 0,5 bi; Bradesco o Banco BMC, US$ 0,4 bi; Gol a VARIG, US$ 0,3 bi; Gerdau a Sid Tultilán, por US$ 0,3 bilhão. As companhias Vale do Rosário e Santa Elisa, duas tradicionais produtoras de açúcar e álcool, realizaram uma fusão criando a segunda maior empresa do setor no país, com capacidade para processar 18 milhões de toneladas. Segundo o Estadão (06.07.07, p. B11), a criação da nova companhia é parte de um movimento estratégico que promete mudar a história sucro-alcooleira nos próximos anos. "As usinas independentes, com instalações para 1 ou 2 milhões de toneladas, estão com os dias contados. As usinas do futuro vão processar cada uma de 3 a 4 milhões de toneladas por safra". O importante é ter escala, diz Tarcilo Rodrigues, da Bioagência.
Resultado deste processo, o Brasil desponta entre os países emergentes como um dos que mais produz multinacionais, ao lado da China, Índia, Rússia, Cingapura e Taiwan (Valor Econômico Especial, 28.06.07, p. F1). Em 2006, pela primeira vez os investimentos brasileiros diretos no exterior, de US$ 28,2 bilhões, superaram em muito os investimentos diretos estrangeiros no Brasil, que atingiram US$ 18,7 bilhões. Com as compras, o frigorífico Friboi passa a ser o maior do mundo e a Vale do Rio Doce a segunda maior mineradora.
As companhias brasileiras listadas na Bolsa de Valores de São Paulo destacam-se entre as mais internacionalizadas, avaliação feita com base em sete itens referentes à presença externa. A líder é a Gerdau, a CVRD era a terceira, antes da compra da Inco. O segundo lugar é da Construtora Odebrecht, seguida da Petrobrás, Marcopolo, Sabó, Aracruz, VCP, Klabin, Sadia, Perdigão, Embraer, Natura, Andrade Gutiérrez e empresas menores como Escolas Fisk e Datasul.
Dados, números grandiosos, pra se perguntar: o velho capitalismo, aquele voltado para a produção, que parece estar com os dias contados, não era melhor? Como pensar um processo de mudança e formular um projeto de desenvolvimento com distribuição de renda dentro deste ‘novo’ capitalismo? O Estado ainda tem algum papel e influência ou valem só as leis de mercado, e financeiro? Qual o espaço e o futuro dos pobres e miseráveis, em número cada vez maior e mais espalhados pelo mundo, em tempos de capital financeiro que compra tudo e todos? Quais valores imperam? A solidariedade e a justiça ainda têm vez e possibilidade? E o aquecimento global? E a fome? E a destruição da natureza? Ainda é possível ter esperança?
Não é pra ser pessimista, que não o sou, mas o quadro descrito leva a pensar, e muito, e, sem dúvida, a (re)analisar as estratégias de transformação. Respostas, quem as tiver...
(Por Selvino Heck*,
Adital, 06/08/2007)
* Assessor Especial do Presidente da República. Fundador e Coord. do Movimento Fé e Política