Cooperativa de recicladores pode ser alternativa de renda para ex-presidiários em POA
catadores de lixo
2007-08-06
Imagine uma Cooperativa que pudesse dar condições de trabalho e geração de renda ao ex-presidiário. Modelo assim ainda não existe, mas em Porto Alegre 700 pessoas, oriundas de comunidades carentes, trabalham na separação do lixo em parceria com o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU). Elas estão distribuídas em 14 unidades ou associações de separação de resíduos sólidos urbanos. Em uma delas, na Associação dos Recicladores do Loteamento Cavalhada, onde trabalham 42 pessoas, a renda média gira em torno de R$ 400,00 mensal para cada trabalhador. Cada associação recebe um subsídio de R$ 2.500,00 do Município para pagar as contas de energia e água, os equipamentos de proteção individual, além de fazer a manutenção ou compra do maquinário e garantir a conservação dos galpões.
Pensando nisto, o coordenador da Pastoral Carcerária na Região Sul, Giuseppe Marramarco, que há 20 anos luta por condições mais dignas aos apenados, idealizou a construção de uma Cooperativa de Recicladores de Resíduos Sólidos Urbanos para Egressos do Sistema Peniteniário. A proposta, entre outras coisas, visa driblar as tristes estatísticas do sistema prisional no estado. No Rio Grande do Sul são atualmente 24.839 presos para 16.168 vagas, de acordo com a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe). A taxa de reincidência dos presídios gaúchos é de 73%, e é considerada a menor do País. O número de foragidos da Justiça chega a 6.000. A situação mais crítica de superlotação é a do Presídio Central de Porto Alegre, que tem em torno de 4 mil presos, enquanto a capacidade é de 1.542 vagas.
Mesmo num cenário tão desanimador, Marramarco acredita que esta situação pode mudar. A Cooperativa seria uma oportunidade de reintegração do ex-detento na sociedade, que ajudasse a diminuir a taxa de reincidência, aproveitando o resíduo sólido gerado no município. “Somente 30% do lixo da capital é reciclado; o 70% restante é desperdiçado. Quanta riqueza é jogada fora! É dever do Governo dar condições de ressocialização e reinserção no mercado de trabalho, mas ele não cumpre essa tarefa. Então, por que não criar cooperativas com a mão-de-obra de tantos egressos?”, questiona Giuseppe.
No Brasil, dos 361 mil presos, apenas 18% participam de alguma atividade educativa durante o cumprimento da pena, apesar de a Lei de Execução Penal garantir o direito à educação. Do total da população carcerária, 10% são analfabetos e 70% não terminaram o ensino básico, segundo informações do Ministério da Justiça. Para Giuseppe, a alfabetização dada nos presídios é tão precária, que o percentual de presos que assistem às aulas formam um percentual quase insignificante. “O Estado considera o preso alfabetizado quando ele consegue ler e escrever o próprio nome, mas esse mesmo preso não é capaz de ler e interpretar o texto do seu próprio processo penal”, critica.
Fundação do egresso
Numa de suas visitas de rotina, realizada semanalmente nos presídios do Estado, ele perguntou a um grupo de presos o que eles fariam quando saíssem em liberdade. Muitos responderam que teriam que roubar para comer, porque não sabiam fazer outra coisa. Este diálogo o levou a pensar em meios para a reinserção do ex-detento na sociedade, dando origem a Fundação de Apoio ao Egresso do Sistema Penitenciário (Faesp), localizada na Avenida Bento Gonçalves.
Em 1997, ano da Campanha da Fraternidade, Jesus Cristo Encarcerado, Giuseppe foi convidado para dar uma palestra sobre o trabalho da Pastoral Carcerária no Tribunal de Justiça de Porto Alegre. Durante a explicação, ele perguntou a esposa de um desembargador quantos dias ela já havia ficado sem comer. Um dos ouvintes questionou, então, o que ele queria sugerir com isso. Ele explicou que não basta libertar o preso e não oferecer-lhe assistência. “Porque quando esse liberto volta para casa e não encontra trabalho, e ainda vê sua família passando fome, ele volta a roubar, porque a fome é urgente”.
A partir desse dia, os juízes que o escutavam construíram a Faesp, que atua no plantão de pronto-atendimento ao ex-presidiário e o encaminha para as áreas de educação, trabalho e administração, através de parcerias e doações. A iniciativa já atendeu até hoje mais de mil egressos, e a taxa de reincidência é quase nula. “Ainda assim, só a Faesp é muito pouco; ela vem cumprindo com muita dificuldade seu papel. Nesses 20 anos, o número de apenados quadruplicou, aumentando a superlotação. Apesar da construção de novos complexos carcerários, eles, infelizmente, não recuperam ninguém. Muito pelo contrário, ali se aprimoram os pequenos e grandes crimes”, comenta Giuseppe Marramarco desolado.
Devido a sérios problemas de saúde, Marramarco realiza hoje um trabalho do tipo formiguinha, em passos lentos. Apresentou a proposta para o Tribunal de Justiça, mas não obteve retorno e quer começar a recolher assinaturas de detentos que estão cumprindo os últimos anos de pena e têm interesse em trabalhar na Cooperativa. “Esse projeto é para aquele preso excluído do excluído, analfabeto, sem formação qualquer, que não aprendeu ofício nenhum nem na sociedade nem na prisão”, explica.
Proposta utópica
De acordo com o DMLU, órgão responsável pela gestão dos resíduos sólidos de Porto Alegre, o lixo da cidade já tem um destino: as 13 Unidades de Separação do Lixo da Coleta Seletiva e a Unidade de Triagem e Compostagem na Lomba do Pinheiro, que recebe o lixo domicilar, isto é, aquele lixo que não foi separado pela população. “Das mais de mil toneladas de lixo recolhidos diariamente pelo DMLU, somente 30% é potencialmente reciclável. Isso porque as pessoas não se preocupam em fazer a separação nos seus domicílios. Todos os dias, apenas 60 toneladas são levadas para a coleta seletiva, enquanto as outras centenas de toneladas de lixo domiciliar são levadas diariamente para triagem e compostagem. Não reciclamos mais por falta de conscientização ambiental da população”, argumenta o diretor da Divisão de Projetos Sociais, Reaproveitamento e Reciclagem do DMLU, Jairo Armando dos Santos.
O DMLU realiza o serviço de limpeza, coleta, tratamento e disposição final dos resíduos, além da promoção de atividades de preservação e educação ambiental. Neste trabalho, 100% dos bairros da cidade são atingidos e 90% das ruas são percorridas pelos caminhões da coleta. O número não é maior porque existem regiões com vielas muito estreitas, que dificultam o acesso do caminhão.
Um dos entraves para a aplicação concreta deste projeto é a questão legal, já que o município não permite a coleta de material reciclável em vias urbanas. Neste caso, a expansão da capacidade da Cooperativa estaria ameaçada, porque, desde meados de 1990, as empresas são obrigadas a entregar todo o lixo que geram ao DMLU, para receber a licença de operação da Prefeitura.
Segundo Jairo, a idéia de cooperativa proposta pelo Marramarco é utópica. “Sou favorável às cooperativas, às associações, desde que a coleta seja feita pelo poder público. Quando alguém deixa seu lixo em vias públicas, este passa a pertencer imediatamente ao governo municipal e, neste caso, ao DMLU. Para nós o lixo não é problema sob hipótese alguma. Ele é nosso e ninguém tasca!”
O DMLU fiscaliza e autua os carroceiros e carrinheiros, que, muitas vezes, rasgam as sacolas de lixo jogadas nas calçadas, retirando somente aquilo que tem valor comercial imediato, como o papelão, plástico, alumínio, deixando um rastro de resíduos exposto pela cidade, quando não o levam para as Ilhas do Delta do Jacuí, formando os lixões com todo o material que eles não reaproveitam. “A Prefeitura pode terminar hoje mesmo com a atividade ilegal dos carroceiros, porque ela tem poder para fazer isso, mas não é assim que trabalhamos. Preferimos a via do diálogo, encaminhando-os para as nossas Associações. A dificuldade reside na falta de interesse, já que muitos deixariam de vender o que conseguem coletar individualmente, para estar submetidos a comercializar o lixo coletado pelo DMLU. Neste caso, autuá-los também seria desumano, pois muitos retiram dali sua única fonte de renda. Sem esse dinheiro, não teriam como comer e começariam a roubar para sobreviver”.
Monopólio do lixo
Giuseppe diz que o lixo já se tornou um monopólio do município, o único dono. “O Governo Estadual e Federal devem apontar uma solução para os ex-presos. São 92 unidades prisionais no Estado, onde cada preso custa 3 salários mínimos por mês aos cofres públicos. Melhor seria, então, colocá-los para trabalhar pagando ao menos 1 salário, o que reduziria a reincidência e ainda economizaria 2 terços do que se gasta atualmente”, argumenta.
O vereador João Carlos Nedel, do PP, é favorável a idéia da Cooperativa, mas aponta que a doação de um terreno de 10 hectares pela Prefeitura, como sugerido por Marramarco, é inviável, porque a cidade já sofre com o grave problema do déficit habitacional. “A Cooperativa é interessante, eu dou todo o meu apoio, mas ela deve ser construída próximo de Porto Alegre, para evitar desperdício de combustível com o transporte. Mas acontece que a cidade não tem mais terrenos próximos para doar”. O vereador sugeriu também a captação de recursos através de ONG´s internacionais como forma de obter ajuda para os gastos iniciais com a compra do terreno, a estrutura do local e as máquinas necessárias.
Para o diretor do DMLU, com a construção da Cooperativa, o bolo do lixo coletado diariamente teria que ser dividido em pedaços ainda menores para ser distribuído a todas as unidades, o que diminuiria significativamente a renda dos catadores organizados nessas associações, e arremata: “Assim como o projeto do Marramarco, outros tantos também passam por aqui, muitas pessoas me procuram para apresentar idéias, mas a maioria delas é inviável”, lamenta.
Giuseppe sabe das dificuldades para dar início ao projeto. “Iniciar esta tarefa não será nada fácil, muitas pessoas vão se opor, principalmente por causa do estigma que o ex-presidiário carrega. Sempre vai ter quem diga que eles não têm direito a este trabalho, porque são ladrões, assassinos. Neste caso, eu pergunto: não seria mais fácil colocar todos eles em um paredão e matá-los? Você teria coragem de fazer isso?” E conclui: “Eu já estou velho para continuar esse trabalho, mas quando alguém me pergunta por que eu ainda me ocupo com os presidiários, eu respondo uma frase de São Francisco de Assis: É tão fácil levantar um ferro para bater, mas tão difícil levantar uma mão para acariciar. Na Pastoral Carcerária nossa missão não é julgar ou condenar o erro, mas sim, conscientizar o agressor das suas faltas cometidas e incentivá-lo ao perdão”.
(Por Adriana Agüero, Ambiente JÁ, 04/08/2007)