A campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo biocombustível começa a exigir do governo uma séria atenção às manhas da política regional. Na Bolívia, por exemplo, como praticamente toda ação do governo Evo Morales, existem razões internas, mais que influência do venezuelano Hugo Chávez, para os recentes e constantes ataques do presidente boliviano aos biocombustíveis. No continente, um dos grupos empresariais mais engajados com as perspectivas do etanol é a Câmara de Indústria, Comércio e Serviços de Santa Cruz de la Sierra (Cainco), uma das entidades mais vocais na oposição a Morales.
O Itamaraty já recebeu sinais de que empresários bolivianos contrataram, no Brasil, a compra de equipamentos para montar usinas de álcool em território da chamada media-luna boliviana - a região rica da Bolívia, onde estão as reservas de gás e vicejam rumores de separatismo.
Fala-se em algumas centenas de milhões de dólares, e em embarques apenas adiados pela enorme demanda sobre os fabricantes brasileiros, que obrigam os bolivianos a esperar na fila para suas usinas. Morales, ao bradar contra o etanol, não repete Hugo Chávez e Fidel Castro em uma campanha bolivariana; anuncia uma briga com a elite econômica da Bolívia. E sobrarão reflexos, claro, para o Brasil.
Lula, em compensação, ganhou novo aliado na defesa das alternativas biocombustíveis na América Latina. O secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), José Miguel Inzulza, alistou-se entre os defensores do etanol e das alternativas renováveis de energia. Tornou-se mais uma voz, além de Lula e do ex-ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, a cantar as vantagens do etanol combustível e dos carros flex fuel; e a negar que essa opção ameace a produção de alimentos ou a pequena agricultura.
Inzulza fez sua última manifestação em defesa das teses de Lula durante seminário sobre agricultura promovido pelo IICA, na Guatemala, na semana passada. Os elogios de Inzulza às vantagens do etanol de cana sobre o etanol de milho chegaram a provocar uma manifestação queixosa, dos representantes dos Estados Unidos, cujo etanol de milho subsidiado tem sido apontado como vilão nas críticas aos biocombustíveis.
Evo Morales ataca o etanol; OEA defende
Além da OEA, Lula tem ganho aliados na América Central, e é apoiado por outro organismo internacional, a FAO, organização para agricultura e alimentação das Nações Unidas. Representado na organização pelo seu ex-braço direito José Graziano, Lula tem, na FAO, um aliado e um bom conselheiro.
Um relatório da organização e da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) dedicou-se aos riscos e vantagens dos biocombustíveis, e a divulgação do estudo na imprensa, em maio, deu-se pelo seu lado contrário aos interesses do Planalto, o dos riscos e perigos de um crescimento excessivo e demasiadamente rápido do cultivo de culturas destinadas a substituir os derivados de petróleo. O estudo é favorável às causas defendidas por Lula, porém, se o governo brasileiro não tratar o tema com a mesma inapetência gerencial que o deixou refém do caos aéreo.
O que a FAO afirma, contra o senso comum, é que não foram esgotadas as áreas agricultáveis, o que permite uma expansão do cultivo de vegetais destinados à produção de biocombustíveis, sem necessidade de redução da produção de alimentos, ou de invasão da mata virgem - e o Brasil, aponta a FAO, está em situação privilegiada nesse aspecto; assim como, vejam só, a Bolívia.
Mas a FAO e a Cepal também dizem que um crescimento muito rápido, sem fiscalização oficial e sem medidas de precaução - para proteger e beneficiar os pequenos produtores, e evitar avanço danoso sobre as fontes de água, por exemplo - pode trazer mais problemas que vantagens com a guinada para a produção de biocombustíveis.
As constantes denúncias de trabalho escravo em plantações de cana, e as condições sub-humanas a que estão sujeitos trabalhadores em algumas fazendas mostram que o Estado brasileiro não tem sido tão eficiente em combater as mazelas do setor quanto tem sido bem-sucedido em propagar ao mundo o êxito do etanol no Brasil.
Outro indício de autismo na retórica oficial é a reportagem de Liana Melo no jornal "O Globo" deste domingo, em que se revela com riqueza meticulosa o avanço dos projetos sucroalcoleiros sobre o território da Amazônia Legal - o que tem expandido a plantação de cana no Acre, Pará, Maranhão e Tocantins, em contradição flagrante com a repetida afirmação de Lula, de que não se planta cana-de-açúcar na Amazônia. Planta-se, sim; por enquanto, aparentemente, apenas nas áreas anteriormente degradadas pela pecuária, que, deslocada pela cana e culturas mais lucrativas (soja, além de alimento, também é biocombustível), ameaça expandir-se por territórios de floresta nativa.
Se, como afirma a Embrapa na reportagem de "O Globo", 3% do território acreano é propício à plantação de cana, não surpreende que haja, também, terras favoráveis ao plantio na Bolívia, ao lado. A Bolívia tem mais de 15 milhões de hectares cultiváveis e explora apenas 3 milhões, argumenta o gerente de promoção do Instituto Boliviano de Comércio Exterior (IBCE), Miguel Ángel Hernández Quevedo, citando o estudo da FAO e da Cepal. O IBCE, respeitado centro de estudos, vem promovendo estudos alentados em defesa do etanol na Bolívia. O que só torna mais dramática a oposição de Evo Morales às alternativas do biocombustível - que, ao contrário do que se poderia supor, não são uma ameaça econômica, mas uma potencial fonte de riqueza (e poder) no país.
A situação boliviana, ao lado dos alertas da FAO, mostram que o Planalto aponta na direção correta ao defender a criação de diretrizes e normas de sustentabilidade ambiental para a produção do etanol combustível. O impacto político dessa alternativa mostra também, que, nesse caso, não basta anunciar; é preciso mostrar competência na realização das intenções palacianas.
(Por Sérgio Leo,
Valor Econômico, 30/07/2007)