Nas últimas semanas, a atenção do governo brasileiro voltou-se para a difícil tarefa de construir gigantescas barragens hidroelétricas no bacia do rio Amazonas. O projeto apresenta ao Presidente Luiz Inácio Lula da Silva uma enorme contradição entre seu ambicioso plano de desenvolvimento econômico, baseado na infra-estrutura de grande escala, e os enormes custos sociais e ambientais representados pelas barragens.
Por um lado, a construção de barragens tem um papel crucial no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), uma iniciativa do governo que visa o desenvolvimento da infra-estrutura de grande escala. O PAC é um programa, de vários anos, de construções públicas com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico através do incentivo à expansão da infra-estrutura, o que inclui a construção de grandes barragens na Amazônia. Por outro lado, o Presidente, pertencente ao Partido dos Trabalhadores, deve enfrentar o fato de que mega-projetos na Amazônia poderão causar um enorme impacto ambiental e social, e tais projetos também terão que enfrentar consideráveis obstáculos impostos pelas restritas leis ambientais do Brasil. O Presidente Lula encara grandes dilemas e até agora sua resposta tem sido expressa em forma de frustração e cinismo. É preciso que estudos de impacto concretos sejam feitos antes que projetos avancem.
A questão mais disputada é o plano de construção de duas grandes barragens nas corredeiras de Santo Antônio e do Jirau, no Rio Madeira, que fica no estado de Rondônia, Amazônia. O projeto visa à barragem do principal tributário do Amazonas, causando dramáticas mudanças na ecologia fluvial e afetando milhares de famílias que dependem do rio para seu sustento, nutrição e agricultura. Com uma capacidade conjunta para gerar 6,450 MW, os planejadores de energia do governo insistem que as barragens do Madeira são essenciais para que se evitem futuros apagões durante a próxima década. No entanto, ao decorrer de dois anos de análises, a agência brasileira do meio-ambiente, IBAMA, recentemente publicou que não poderá liberar o controverso projeto. Afirmando não possuir informações suficientes para que a decisão seja tomada. O IBAMA ordenou aos proponentes do programa—Furnas, uma companhia de energia do estado, e a Odebrecht, um gigante da indústria brasileira da construção civil—que seja submetido uma série de estudos complementares para que se possa determinar se o projeto é "ambientalmente viável"—um critério usado pela lei brasileira.
As companhias já apresentaram tais estudos e a notícia é de que Lula já tenha dado ordens para que o IBAMA aprove condicionalmente o projeto, com o condicionamento de que se aguardem ações que poderão supostamente 'atenuar' alguns dos impactos mais sérios causados pelo projeto.
A decisão do IBAMA foi tomada no mesmo momento em que o Ministério do Meio-Ambiente, sob o comando da internacionalmente renomada defensora do meio-ambiente e ex-líder dos seringueiros, Marina Silva, está se tornando mais e mais marginalizado dentro do governo Lula. A centro-esquerda e partidos políticos de direita, com participação na coalizão governamental, estão mais fortes e consistentemente opõem-se às leis ambientais mais estringentes. Mesmo assim, Lula em sua última mudança ministerial recusou-se a demitir Silva; uma indicação de que o valor dela como símbolo do compromisso desta administração em relação ao meio-ambiente, é maior do que o desconforto causado pela sua insistência em manter o padrão das políticas de proteção ao meio-ambiente em relação aos projetos grandiosos—Lula insiste ser necessário para impulsionar o crescimento econômico do país.
O setor brasileiro de energia elétrica lançou uma torrente de criticismo contra a ministra do meio-ambiente, alegando que o IBAMA está impedindo o desenvolvimento do Brasil. Silva manteve-se firme, afirmando que "não há um prazo definido para a aprovação do projeto Madeira". Isto levou o diretor geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), Jerson Kelman, a propor a mudança do poder decisório dos "projetos estratégicos" (isto é, grandes barragens na Amazônia e plantas nucleares) para fora do âmbito do IBAMA; e a transferência destes para a jurisdição do Conselho de Defesa Nacional, um órgão de consulta com participação dos militares, entre outros membros do governo.
A Ministra Silva dobrou-se à pressão, anunciando uma reestruturação do IBAMA. Separando o órgão em duas entidades distintas: uma voltada somente para o licenciamento ambiental, e a outra para o gerenciamento de áreas de proteção ambiental. Mesmo assim, é difícil imaginar como isto vai realmente resolver um impasse que está se aprofundando.
Ao enfrentar cortes salariais e demissões, os funcionários do IBAMA entraram em greve, forçando a agência a empregar consultores para que terminem o licenciamento do projeto Madeira.
Há um Decreto Lei, em discussão no Congresso Federal neste momento, que anula os direitos humanos dos povos indígenas que são assegurados pela Constituição, forçando-os a aceitar royalties pelas barragens hidroelétricas construídas em reservas indígenas. A Constituição Brasileira estabelece que os povos indígenas devam "ser ouvidos" quanto a planos de construções de barragens que venham a afetar seus territórios, um dispositivo legal que tribunais interpretaram requerer dos povos indígenas um consentimento baseado em informação.
Os projetos das barragens do Madeira são um indicativo do árduo terreno que o governo terá que atravessar, se este continuar com os planos de construir mais de 60 barragens nos mais importantes rios da Amazônia, durante as próximas décadas. A tendência é de tratar estes projetos como "decididos". Nas palavras do especialista de energia Sérgio Bajay, da Universidade de Campinas, o setor de energia elétrica possui "uma mão-de-ferro". O governo e as companhias negam que o projeto terá sérias conseqüências.
Um executivo da Odebrecht disse numa palestra pública em Rondônia, maio passado, que "este é um tipo de projeto diferente de barragem—não há praticamente nenhum impacto no meio-ambiente". Entretanto, estudos independentes comissionados pelo Ministério Público do Estado de Rondônia e pelo IBAMA, confirmam o que os ambientalistas e os movimentos sociais já temiam—de que o projeto Madeira teria um enorme impacto. Este impacto repercutiria por milhares de quilômetros, indo da boca do Amazonas até o Madeira, e além, em direção aos vizinhos Bolívia e Peru. O fator principal é o alto teor de sedimentos do Madeira—o rio carrega milhões de toneladas de barro, areia e limo vindos dos Andes, aonde o Madeira nasce e corre em direção ao Amazonas. Estes sedimentos representam a metade de todos os presentes no baixo Amazonas. Os estudos mostraram que, quando as barragens entrarem em operação, o reservatório acima do Jirau se encherá de sedimentos, aumentando a área inundada para dentro das florestas tropicais da do país vizinho, a Bolívia. A retenção destes sedimentos atrás das paredes das barragens, também roubaria das planícies aluviais, rio abaixo, os preciosos nutrientes que fertilizam as terras agrícolas e ajudam a manter a incrível biodiversidade do Madeira—há 750 espécies de peixe e 800 espécies de pássaros ao longo do corredor ecológico do Madeira.
A pressão do governo para que o IBAMA libere o licenciamento do projeto foi impulsionado pelo estudo de um consultor hidroelétrico financiado pelo Banco Mundial, que disse que todos os sedimentos passariam pelas turbinas, eliminando qualquer impacto que poderia ser causado.
Implicações InternacionaisOutro impacto identificado é do possível efeito infringido nas espécies de peixes migratórios. Algumas espécies nadam mais de 3,000 quilômetros a cada ano, acima dos tributários do Rio Madeira, para fazer a desova. Os cientistas suspeitam que o instinto destes peixes seja o de continuar a serem atraídos para o Madeira; e com as barragens restringindo o acesso aos locais de reprodução, várias espécies importantes tornar-se-iam extintas. Estas espécies servem de principal fonte de proteína para milhares de moradores ribeirinhos ao longo do Madeira e do Amazonas; e também representam um considerável valor econômico tanto para os pescadores artesanais, quanto para os industriais.
Este achado levou Lula a comentar cinicamente que, "Agora não pode por causa do bagre. Jogaram o bagre no colo do presidente. O que eu tenho com isso?" criticando os ambientalistas que se opõe ao projeto Madeira.
O impacto na Bolívia poderá eventualmente bloquear o avanço do projeto. Os funcionários do governo brasileiro (com exceção aos do IBAMA) têm tentado ignorar o fato de que para que o Brasil construa uma barragem que inunde o território de um país vizinho, precisará negociar um conjunto de tratados complexos, na ausência do qual, o Brasil será culpado de violar leis internacionais. Evo Morales disse a Lula, durante um encontro em Janeiro, que seu governo está preocupado com o impacto do projeto Madeira. Lula respondeu oferecendo-se para financiar uma barragem binacional rio acima, entre o Brasil e a Bolívia, planejada de acordo com o modelo da Iniciativa para a Integração da Infra- estrutura Regional Sul-americana (IIRSA). Foi reportado que Morales rejeitou a oferta.
O Diretório para o Meio-ambiente da Bolívia vem analisando estudos técnicos relacionados ao projeto, e as recomendações estão agora sendo discutidas pelo governo Morales. É esperado que nas próximas semanas seja tomada uma posição definitiva com relação ao projeto. Com as discussões que o governo boliviano está travando com o Brasil, a respeito da nacionalização dos interesses da Petrobrás no país, a decisão de Morales de se opor ou não às barragens do Madeira poderá depender de outras considerações geopolíticas e econômicas.
Questões sobre a viabilidade econômicaAdicionado aos sérios problemas de viabilidade ambiental do projeto, o Brasil poderá também ter dificuldade em atrair investimento suficiente, devido a questões de viabilidade econômica. O projeto foi originalmente proposto como uma fonte de energia barata para a rede de energia nacional, mas os custos continuam a crescer. A última estimativa da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) estabelece os custos das barragens de Santo Antônio e do Jirau de serem US$13.2 bilhões, sem incluir os custos adicionais—estimados, pelo governo, a atingir até US$7.5 bilhões—para a construção de 2400 km de linhas transmissoras, conectando as barragens à rede central de energia elétrica.
Também, não inclui os custos das comportas de navegação e o custo de construir barragens rio acima para que se possa inundar uma série de corredeiras; fazendo assim possível com que barcaças possam navegar da boca do Amazonas até acima dos tributários do Madeira. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES, ofereceu termos financeiros generosos como parte do programa PAC. O governo brasileiro, também discutiu financiamento com o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Mundial. Mas parece que, antes de qualquer comprometimento com o projeto, a maioria dos investidores particulares está analisando os fatores econômicos das barragens com cautela, assim como a possibilidade de problemas ambientais. Cláudio Sales, o coordenador de uma associação do setor elétrico brasileiro, Instituto Acende Brasil, disse "que projetos faraônicos como esse, comandados por estatais, sempre ultrapassam, em muito, os custos e os prazos iniciais".
Também como parte do PAC, o governo brasileiro está tentando o licenciamento de outra barragem, em Belo Monte, planejando gerar a capacidade de 11,182 MW. Esta seria a primeira de uma série de barragens planejadas para o Rio Xingu, outro tributário do Amazonas. A barragem deslocaria pelo menos 16,000 pessoas, e afetaria diretamente 450 indígenas.
Os estudos ambientais estiveram, até agora, impedidos de serem executados, devido a um pedido de ação judicial de procuradores federais, alegando que o IBAMA ainda não estabeleceu o critério para tais estudos. Recentemente, populações indígenas de todo o Xingu, durante um encontro, declararam oposição ao projeto.
O Ministro de Minas e Energia, já anunciou, que outra enorme barragem, São Luis, no Rio Tapajós, com a capacidade de gerar mais de 9,000 MW, será o próximo projeto gigante que o governo irá promover. Outros rios principais da Amazônia, como o Araguaia e o Trombetas, também estão sendo propostos para a construção de barragens. Torna-se claro, que o governo Lula continuará a pressionar para que o licenciamento das barragens do Madeira saia. O IBAMA, que tem se defendido continuamente, em seu papel de analisar o impacto do projeto, irá certamente achar esta posição impossível de ser defendida, dada a contínua leva de criticismo político que tem recebido.
Por esta razão, quer construam ou não o complexo Madeira, a decisão final será feita por motivos políticos e não baseada em aspectos técnicos. O que é ainda menos provável que aconteça, é uma análise das alternativas ao complexo Madeira, ou aos outros projetos mega-hidrelétricos sendo planejados para a Amazônia.
O setor elétrico brasileiro tem atacado a qualquer um, o que inclui a organização o Fundo Mundial para a Natureza ( WWF, World Wide Fund for Nature ), que tenha a ousadia de sugerir o uso eficiente de energia—ou alternativas energéticas—como soluções para o problema energético, isto é, se o país quisesse evitar destruir a Amazônia.
Foram rejeitados como utópicos e idealistas, os estudos feitos por especialistas de energia, mostrando que uma modernização das usinas já em operação e a diminuição da perda nas transmissões, poderia fornecer ao país uma significativa quantidade de energia nova, a baixo custo, e com quase nenhum impacto ambiental.
O interesse econômico de conglomerados da indústria da construção, responsáveis pela maior parte do financiamento das campanhas políticas no Brasil, e a corrupção que permeia projetos de vários bilhões de dólares—considerados pelo Presidente como "estratégicos" para o país—falam mais alto do que os especialistas científicos e técnicos.
As vozes das comunidades ribeirinhas da Amazônia, não se escutam em Brasília. A corrupção se faz evidente. Recentemente, o Ministro das Minas e Energia foi obrigado a pedir demissão, depois que a Polícia Federal filmou um diretor de uma companhia de construção entregando, em seu gabinete, um envelope de dinheiro.
O futuro da Amazônia dependerá de que, os conflitos legais e diplomáticos, tenham o poder de estancar a visão de desenvolvimento brasileiro planejada por Lula. Forçando os planejadores de energia a procurar caminhos alternativos.
(Por Glenn Switkes, Coalizão Rios Vivos /
Amazonia.org, 27/07/2007)
* Glenn Switkes é Diretor da Oficina Latino-americana do Rede Internacional dos Rios em São Paulo