SÃO PAULO – A comunidade de Lagoa Nova, localizada no município de Pacatuba (SE), é composta por cerca de 100 famílias de trabalhadores rurais quilombolas. Elas vivem numa área de 2.812 hectares, desapropriados após identificação daquela população como de remanescentes de quilombos. Para obter outros 500 hectares, sem os quais o Assentamento Independência, onde vivem as famílias, tornaria-se insustentável, os trabalhadores precisaram ir até a Justiça. Antes da posse definitiva, a área estava sendo utilizada para o cultivo de cana de açúcar pela Usina Sanagro. Além do problema territorial, Lagoa Nova também sofre diante de um atendimento esporádico de saúde e de péssimas condições de funcionamento da escola que serve à comunidade.
O quadro acima é apenas um exemplo das principais dificuldades que populações remanescentes de quilombos enfrentam no país. Em novembro de 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o decreto 4887, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por quilombolas. Em fevereiro deste ano, o decreto 6040 estabeleceu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Apesar da política do governo federal ser clara ao dar importância para o reconhecimento e fortalecimento dessas comunidades, a realidade, para os quilombolas, tem sido bem mais dura.
A campanha feita por setores conservadores da sociedade, que ganhou espaço e repercussão em alguns veículos da grande imprensa, começa agora a ter reflexos no Congresso Nacional. Em pronunciamento recente no Congresso, o senador Gerson Camata (PMDB-ES) afirmou que a regularização fundiária de terras quilombolas pode “gerar uma guerra” no país. Segundo Camata, falsos quilombos estariam se multiplicando pelo país.
“Estão se baseando num direito que não existe. Estão pregando o ódio racial, pensando que vão iniciar uma revolução cubana no Brasil. Escrituras centenárias estão sendo invalidadas. Tem gente se armando e se preparando para uma guerra. Estou avisando pela segunda vez, antes que algo lamentável aconteça”, declarou.
O deputado Valdir Colatto (PMDB-SC) fez coro com Camata. Em pronunciamento aos deputados, disse que o campo vive um período de absoluta instabilidade e intranqüilidade, e que a demarcação de territórios indígenas e quilombolas é um dos motivos para este quadro. Aos fazendeiros, deixou o seguinte recado: “Todos precisam estar unidos nesta luta pelo direito de propriedade e a garantia do uso da terra”.
Colatto, no entanto, não se limitou ao discurso público. O deputado apresentou um Projeto de Decreto Legislativo (44/2007) que susta a aplicação do decreto que regulamenta o reconhecimento e demarcação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas. No Senado, o caminho também deve ser seguido por Camata.
Em reposta às movimentações da bancada ruralista, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias recebeu o requerimento para a realização de uma audiência pública para tratar do projeto de Colatto. A idéia é que representantes do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), da Confederação Nacional da Agricultura, da Fundação Palmares – que participa do processo de titulação dos territórios quilombolas – e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Quilombolas sejam ouvidos.
“Com o inicio das demarcações a polêmica se ampliou junto aos proprietários, prefeituras, comunidades quilombolas e entidades de direitos humanos. O decreto, visto como um avanço no reconhecimento dos direitos destas comunidades, abriu uma grande discussão, e conseqüentemente estão acontecendo mobilizações em diversas regiões do país, com posições favoráveis e contrárias”, afirmou o deputado Adão Preto (PT-RS), que solicitou a audiência para que dúvidas sejam sanadas, “evitando assim que novamente as comunidades negras sejam prejudicadas em seus direitos”.
Orçamento quilombolaNa avaliação do antropólogo Ricardo Verdum, assessor do Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos, o fortalecimento das comunidades quilombolas e do movimento de defesa dos remanescentes de quilombos como um todo é central para o enfrentamento da ofensiva conservadora de setores da sociedade. Verdum coordenou um estudo lançamento pelo Inesc na semana passada que revela que, apesar o aumento progressivo ano a ano dos valores orçados para o desenvolvimento de políticas voltadas para os quilombolas, a execução orçamentária dos recursos segue baixa.
De acordo com o levantamento, no período de 2004 a 2006, o governo federal deixou de investir cerca de R$ 100,62 milhões nas ações relativas ao reconhecimento dos direitos das comunidades quilombolas e afrodescendentes de um modo geral. Até o mês de junho, somente 6,39% do orçado para 2007 havia sido investido de fato. Este percentual corresponde a R$ 5,9 milhões, dos R$ 92,4 milhões previstos para este ano.
O orçamento envolve desde ações de reconhecimento, demarcação de terras, titulação e indenização de ocupantes das terras demarcadas ou tituladas até atividades de gestão da política de desenvolvimento agrário, saúde e educação para as comunidades. É um leque de programas que passa pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Ministério da Cultura, do Desenvolvimento Social, Ministério da Saúde, da Educação, Ministério do desenvolvimento Agrário e Ministério do Meio Ambiente.
O programa que concentra o maior volume de recursos é o Brasil Quilombola, que teve orçado para o período 2004/2006 R$ 101,43 milhões, tendo gasto apenas R$ 32,84 milhões (32,38%). Da parcela que cabia ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, responsável pela regularização fundiária das terras quilombolas, somente 20,93% do orçamento foram gastos. Nos seis primeiros meses deste ano, o número executado é de 1,4% dos recursos destinados.
As ações de apoio ao desenvolvimento sustentável das comunidades também ficaram aquém do previsto nos últimos anos, deixando para trás um saldo de R$ 888,68 mil, devolvido ao tesouro. De acordo com o Inesc, no caso do fomento ao desenvolvimento local das populações quilombolas, ação sob a responsabilidade da Seppir, dos R$ 21,73 milhões autorizados no período, ficou um saldo não investido de R$ 9,86 milhões.
“Com certeza, a baixa execução orçamentária dos programas para quilombolas não tem impacto somente no fortalecimento das comunidades, mas também dentro do Congresso. Na medida em que os territórios não são reconhecidos, em que a terra não é garantida, há uma fragilização do próprio movimento, e isso fortalece posições políticas contrárias dentro do Congresso”, avalia Ricardo Verdum. “A conseqüência maior é para as populações, que estão demandando o reconhecimento dos territórios. Nos últimos anos, somente 5 territórios foram reconhecidos. Fica claro, então, que, do ponto de vista do que é necessário, muito pouco foi feito”, acredita.
Para o Instituto, a questão é objetiva: ou o governo federal enfrenta os desafios operacionais e os interesses políticos que vêm dificultando o reconhecimento dos direitos das populações quilombolas ou continuará reproduzindo, nos próximos anos, um baixo desempenho financeiro, com reflexos diretos nos resultados e impactos de programas e ações criados.
(Por Bia Barbosa,
Agência Carta Maior, 25/07/2007)