O protesto da Bolívia pelo projeto do Brasil de construir duas grandes hidrelétricas no rio Madeira, próximo à fronteira entre os dois países, chama a atenção para a importância dos conflitos envolvendo água e desenvolvimento na América do Sul. Disputas pelo uso econômico desse recurso natural destacam-se na política do continente.
O confronto mais grave opõe Argentina e Uruguai, pela decisão das empresas transnacionais Botnia e ENCE, de instalar fábricas de celulose na cidade uruguaia de Fray Bentos, junto ao rio que divide os dois países. Do outro lado da fronteira está o balneário argentino de Gualeguaychú, cuja população se apavorou com a poluição que as fábricas trarão ao rio e iniciou campanha contra a instalação das indústrias. A disputa envolveu bloqueio das pontes que ligam Argentina e Uruguai e se tornou amargo contencioso na Corte Internacional de Justiça de Haia, com acusações e agressões mútuas, contrárias ao espírito da integração regional. Preocupada com o dano a sua imagem, a ENCE capitulou e mudou a fábrica para um local desabitado. A Botnia continua a construção de sua indústria.
A água também é o principal ponto de disputas entre Bolívia e Chile. No fim do século XIX, as tropas chilenas venceram as bolivianas na Guerra do Pacífico e se apoderaram do litoral do país. Desde então a Bolívia pleiteia a reparação da agressão, em conflito tão intenso que os dois países sequer mantêm relações diplomáticas plenas, limitando-se ao nível consular. Absurdo para nações que compartilham a participação em dois processos de integração, Mercosul e Comunidade Andina. A falta de acordo sobre o mar prejudica outras negociações entre bolivianos e chilenos, como o uso de mananciais comuns aos dois países, que poderiam ser importante fonte de abastecimento para a população e a indústria.
E o Brasil? Na década de 1950, o economista Celso Furtado (1920-2004) alertou contra os malefícios da “política hidráulica” de obras faraônicas para levar água ao Nordeste, ressaltando que a necessidade concreta era realizar reformas sociais que distribuíssem a renda e promovessem a industrialização. Embora as autoridades brasileiras prestem homenagens retóricas a Furtado, agem de forma contrária a suas idéias. O projeto de transposição do Rio São Francisco, como as usinas no Madeira, repetem os erros do passado. Canalizam recursos públicos bilionários para reforçar os interesses de conglomerados empresariais do agronegócio e das empreiteiras de construção civil e por isso provocam a decepção da sociedade e as críticas dos especialistas.
Os planos para o Madeira afetam a Bolívia, que compartilha o rio com o Brasil. O país vizinho se queixa do desleixo com que o governo brasileiro trata o impacto social e ambiental das obras e teme que elas prejudiquem a Bolívia, provocando perda de recursos naturais e de biodiversidade, afetando a pesca na região. Também há receios quanto à expansão de doenças como malária e problemas trazidos pela contaminação por mercúrio. A experiência de outras grandes barragens dá razão às preocupações bolivianas.
Na América do Sul, a tendência desta primeira década do século XXI é a nacionalização da água, visando ao seu fornecimento adequado para a população mais pobre. Na Bolívia, movimentos sociais em Cochabamba reverteram a privatização da água, que se fez com base no aumento de tarifas e em leis draconianas que proibiam até a captação da chuva. No Uruguai, referendo nacional vetou a privatização do serviço de abastecimento. Na Argentina, Kirchner retomou o controle estatal da água, após o fracasso de empresas estrangeiras em darem conta da tarefa.
Os países da América do Sul compartilham uma das maiores reservas de água doce do planeta, o Aqüifero Guarani, além de possuírem bacias hidrográficas do porte da amazônica e da platina. É fundamental criar mecanismos de gestão regional desses recursos naturais, dando voz às demandas sociais e garantindo que a água será usada para um modelo de desenvolvimento adequado às necessidades da população.
(Por Maurício Santoro, Ibase/Envolverde, 24/07/2007)