Mais de 500 represas apresentaram problemas no mundo desde meados do século XX. Na Argentina, a pouca manutenção e o envelhecimento das construídas antes dos anos 70, a falta de coordenação entre entidades reguladoras e os magros orçamentos causam um risco latente. Apesar de integrar o Comitê Técnico de Segurança da Comissão Internacional de Grandes Represas junto a países que implementaram há décadas pautas de segurança para suas obras hidráulicas, a Argentina enfrenta um futuro incerto.
A participação do Estado no projeto e construção da maior parte das represas do país garantiram décadas atrás a segurança operacional e estrutural das obras, afirmam especialistas. Porém, a passagem para o setor privado da maioria dos aproveitamentos hidrelétricos, mais a ausência ou escassa intervenção de entidades reguladoras, causaram uma profunda fenda por onde vaza muito mais do que água. “As pessoas consideram que é necessária a segurança nuclear, mas não têm a mesma percepção em relação às obras hidráulicas. Quando uma represa rompe, as conseqüências podem ser incomensuráveis e seu impacto costuma durar dezenas de anos, representando uma catástrofe em perdas de vidas, danos à propriedade e ao meio ambiente”, afirmou ao ser entrevistado o engenheiro Francisco Luis Giuliani, diretor do Órgão Regulador de Segurança de Represas (Orsep).
O Orsep nasceu em 1999 para controlar as represas privadas do país, que representam 30% do total. Porém, ficam fora de sua jurisdição as obras hidráulicas provinciais, as quais podem solicitar assistência técnica junto a esse organismo, que para isso já assinou convênios com os governos de Mendoza, Salta, Jujuy, La Rioja e Córdoba. A Argentina conta com algo mais que cem represas, o que é nada se comparadas com as 40 mil grandes obras construídas nos Estados Unidos. A metade é para geração elétrica. Há os que evoquem épocas de glória em que a engenharia hidráulica era protagonista e dava frutos, como as represas de San Roque, Alicurá, Piedra del Águila e Chocón, Florentino Ameghino e Salto Grande (obra binacional no Rio Uruguai).
Outras passaram à notoriedade por motivos políticos, como Yacyretá, obra argentino-paraguaia no Rio Paraná, cujo custo, inicialmente previsto em US$ 2 bilhões, já superou os US$ 10 bilhões. Mas a hidráulica também tem verso e reverso. Desde meados do século XX, é possível contabilizar mais de 500 ocorrências em represas que enlutaram a comunidade internacional. Entre elas a de Panshet (Índia, 1961), que deixou quatro mil vítimas. A do Rio Vaiont (Itália, 1963), com 2,6 mil mortos, e a de Orós (Brasil, 1960), com mil mortes. Na Argentina, em Mendoza, oeste do país, o dique Frias provocou 20 mortes. Era 1970 e uma cheia que superou as condições do projeto causou a tragédia.
Em 2000, no dique Anillaco, norte do país, cedeu uma parede da obra de contenção e transbordaram entre 500 e 900 milhões de litros. Por sorte, apenas cem dos mil habitantes do povoado vizinho foram afetados, perdendo suas casas ou terras agrícolas. “Salvaram-se por milagre. Esta obra nem um estudante de engenharia teria projetado: sem terraplenagem e sem critério”, afirmou Giuliani. Piedra del Águila, uma obra para geração de energia, irrigação e controle das cheias do Rio Limay, na província de Neuquén, sudeste do país, não deixou vítimas, mas causou despesas com reparos em 1998, quando apresentou rachaduras menores por onde a água passou.
Alguns anos antes, El Chocón, na província de Rio Negro, ao sul, exigiu US$ 50 milhões para reparar um princípio de fratura. Em Paso de las Piedras, na província de Buenos Aires, são necessários US$ 30 milhões para reparar uma fissura do núcleo da represa. “Desde a década de 70 as represas são projetadas com adequados fatores de segurança em relação à geotécnica do lugar, aos materiais utilizados e aos projetos e cálculos hidráulicos e estruturais”, disse em uma entrevista o engenheiro Armando Sánchez Guzmán, diretor-técnico da Comissão Mista do Rio Paraná. “Tenho meus comentários sobre a segurança das represas mais antigas, pois a hidrologia como ciência teve avanços substanciais a partir de 1950”, afirmou.
“As exigências internacionais marcam a necessidade de projetar os vertedouros das represas com a cheia máxima provável, resultante de uma precipitação máxima provável, que se transforma em uma tempestade máxima provável e, finalmente, em uma vazão de águas de chuva ou cheia máxima provável”, acrescentou Guzmán. Além disso, a falta de investimentos afeta o desempenho dos órgãos técnicos e científicos do país, da qual o setor não está isento. “O estado das obras hidráulicas na Argentina é muito desigual e depende da jurisdição. Algumas estão com manutenção muito boa e outras não têm nada”, ressaltou Giuliani durante o XXI Congresso Nacional da Água, realizado em maio na cidade de Tucumán. “A obra de Portezuelo Grande, por exemplo, o único sistema que protege a população contra as cheias do Rio Neuquén, encontra-se em um estado inaceitável”, acrescentou o diretor do Orsep.
De acordo com Giuliani, Os conceitos de segurança mudaram no mundo, como resultado de algumas das catástrofes citadas. Hoje se entende que esta não reside apenas no tratamento de aspectos técnicos, mas no planejamento, no fator humano, na organização e na administração. “As obras hidráulicas impõem um risco que deve ser avaliado. Na Europa e nos Estados Unidos existe legislação especifica, onde a consideração do tratamento do risco é obrigatória”, acrescentou o engenheiro. Na Argentina falta “uma lei de segurança, um levantamento do estado de todas as represas, de diretrizes nacionais de segurança e conseguir que represas e barragens alcancem padrões aceitos internacionalmente”, concluiu Giuliani.
(Por Claudia Mazzeo, Terramérica, 23/07/2007)