Em 1946 os constituintes brasileiros decidiram que era a hora da Amazônia na volta do país à democracia, ao final da mais cruel de todas as guerras: criaram uma autarquia, a Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia (SPVEA), com acesso a 3% da receita tributária da União, dos Estados e dos municípios amazônicos. Ela iria, finalmente, incorporar à comunidade nacional sua maior e mais tardia região. Uma das principais tarefas da SPVEA para realizar essa meta era a construção da Belém-Brasília, a primeira de uma série de estradas de integração da Amazônia, que mudaram de vez a região.
A SPVEA, que só foi instalada em 1953, durou apenas 13 anos. Passou à sua sucessora, a Sudam, em 1966, certo patrimônio, incluindo a Belém-Brasília com revestimento primário, alguma infra-estrutura e empreendimentos produtivos de fraca sustentação, que logo desmoronariam. A Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia durou mais tempo, foi extinta, recriada e tenta voltar a tomar forma, contra expectativas céticas ou francamente negativas.
Algumas dezenas de bilhões de reais depois de dinheiro público investido e um tanto menos de capital privado que a ele se associou, o saldo de meio século de política desenvolvimentista é francamente negativo. Seu efeito mais visível, inclusive diante de uma imagem de satélite, é o desmatamento. Quando a SPVEA começou a funcionar, a área alterada pelo homem era muito menor do que 1%. Hoje, é de 17%, abrangendo 740 mil quilômetros quadrados, o equivalente a duas vezes e meia o território de São Paulo, que concentra quase um terço da riqueza nacional. O mais grave é que, na verdade, esse desmatamento aconteceu a partir da década de 70, realizando-se em apenas três décadas. É um recorde mundial de destruição de floresta. E isso exatamente na região que abriga um terço do remanescente de floresta tropical da Terra, a mais rica em biodiversidade que há.
Certamente uma parte dessa cobertura vegetal original teria que vir abaixo com o adensamento humano na região. Mas se a penetração dos colonos ao interior da Amazônia seguisse algum tipo de orientação prévia, de exame da aptidão do solo, da floresta, do regime das águas, da tecnologia adequada a aplicar a partir de tal análise, incorporando o conhecimento acumulado a respeito de cada uma das realidades com a qual o pioneiro iria se deparar, a área alterada seria muito menor e os efeitos negativos dessa intrusão menos intensos - e, talvez, não se tornassem irremediáveis. Haveria tempo e modo de usar melhor os recursos da natureza. Sem dilapidá-los.
Mesmo frentes econômicas com menor grau de agressão aos ecossistemas, por se concentrarem em áreas menores, usando-as mais intensamente, como as minerações, não apresentaram até agora balanço mais favorável do que os pólos da pecuária, da madeira, da agricultura ou da agroindústria. Uma correlação mais inteligente dos efeitos positivos que eles geram com os danos que acarretam, incluindo os ambientais, sociais, econômicos, institucionais e mesmo morais, chegará ao déficit como resultado. A curva dos problemas segue sempre acima da curva das soluções. O crescimento é de rabo de cavalo: para baixo. Os indicadores sociais são assustadores.
Depois das prioridades conferidas ao longo de meio século pelo poder público às diversas modalidades de empreendimento produtivo, é impossível, num exame rigoroso, não constatar o balanço desequilibrado para o homem e a região, que saem perdendo. O resultado, aliás, nem constitui surpresa: foi previsto pelo documento mais categórico produzido pela tecnoburocracia federal, que desempenhou nesse período papel semelhante ao dos sacerdotes nas sociedades antigas, como a egípcia, a grega e a romana.
O II Plano de Desenvolvimento da Amazônia, que regularia (entre 1975 e 1979, exatamente no qüinqüênio do suposto "despotismo esclarecido" do general Geisel) as relações entre o governo e a iniciativa privada, associando-os na empreitada de um desenvolvimento da região mais acelerado do que o do país, dizia com todas as letras que esse tipo de crescimento só seria possível através de um "modelo de desenvolvimento desequilibrado corrigido".
O processo natural resultaria em desequilíbrio: social, espacial, de renda. Mas o Estado interviria para efetuar as correções através de políticas públicas regionalizadas, fundadas em intenso planejamento centralizado. Na aplicação desse modelo o que não faltou foi desequilíbrio, tão amplo e massacrante que impôs à região alguns dos piores indicadores sociais do Brasil, empobrecendo-a ainda mais em relação às outras partes do país, excetuando o Nordeste, seu parceiro constante de infortúnios, em virtude de relações cada vez mais desfavoráveis com o exterior. Não só pelas regras do comércio: também pelas vantagens e benefícios que o poder público concedeu aos investidores, sob o paradoxal e amargo pretexto de que assim estariam potencializando ainda mais o desenvolvimento dessas regiões atrasadas. Desenvolvendo o subdesenvolvimento - é o que acabou sendo.
Com a multiplicação e avolumação dos desequilíbrios, a ação corretiva foi-se apequenando até se tornar inócua ou até contraproducente, mais formal do que real, presente mais nos papéis oficiais do que na prática. A ação estatal se afunila para a punição pós-fato sem ser capaz de preveni-lo, evitando-o. Daí as enormes multas, raramente pagas, ou os impressionantes processos judiciais, raramente finalizados pelo trânsito em julgado do feito. Os recursos tecnológicos e a maior presença do Estado poderão conter a expansão desproporcional das agressões, mitigar os prejuízos, compensar as perdas, mas não modificarão a tendência desse processo de ocupação: o desperdício dos recursos naturais e humanos da Amazônia.
Com a crescente importância da imagem das corporações globais e da disseminação de informações em tempo real, é possível que o balanço extremamente negativo do passado evolua para um balanço só ligeiramente negativo de hoje. Mas sempre se lamentará que a maior fronteira de informações genéticas do planeta, contidas na natureza e na memória dos seus mais antigos habitantes, numa rica história de adaptação e recriação, não tenha usufruído os recursos da sociedade do conhecimento, que lhe é contemporânea e que lhe seria vital.
A ocupação da Amazônia só dará ganhos à região se ela conseguir se antecipar à presença do colonizador, se ela tiver tempo e meios para estabelecer uma estratégia para selecionar o que quer receber, escolhendo o que é melhor para ela, não só para o colonizador (seja ele sociedade anônima ou pessoa física). Como há ondas se espraiando de vários pontos do mundo em direção à Amazônia, com diferentes objetivos, essa capacidade de discernimento só poderá ser estabelecida através da ciência, do conhecimento, do saber.
Se em 1946 os constituintes deram ao executivo federal os instrumentos para que o Brasil realizasse a sua grande saga de conquista, desencadeando fenômenos que resultaram em desmatamento, hidrelétricas, estradas, cidades, minas, cultivos agrícolas, serrarias, conflitos fundiários, trabalho escravo, etc., agora seria a vez de criar uma agência com a missão de colocar a ciência à frente - e dentro - de todas essas realidades. Fazer da Amazônia um projeto de ciência, de integração do melhor conhecimento a cada uma das aptidões da região, incluindo a de continuar a ser, em alguns pontos, o domínio absoluto da natureza, quando a ciência assim o recomendar.
Esse plano seguiria o zoneamento ecológico-econômico, uma ferramenta que já existe, mas é subutilizada ou não se antecipa aos fatos, como devia. Ao invés de lançar uma atividade produtiva para ocupar um espaço novo na fronteira, o governo projetaria para esse ponto um campus, um centro de pesquisa, um experimento, um projeto demonstrativo, com um cronograma físico-financeiro a cumprir, um produto a gerar, como resultado da interação entre alunos, professores e pesquisadores que efetivamente sabem fazer o que aprendem e ensinam, funcionando como extensionistas da ciência de vanguarda nos diversos lugares da Amazônia, criando efeito demonstrativo para os nativos e captando-lhes o saber acumulado. Podia ser numa área isolada e sem ocupação, ou num local já transformado, onde ocorram processos destrutivos, para os quais a presença da ciência servirá de vizinhança reflexa, reflexiva, contraditória e corretiva.
Para que esse plano possa ter tamanho e densidade compatíveis com a grandeza e complexidade da tarefa, será preciso ir além das estruturas institucionais que já existem, de certa maneira abstraindo-as (embora considerando-as na hora de agir), para que realmente a Amazônia passe a ser considerada de maneira semelhante como a Antártida é vista atualmente: um lugar em que a prioridade é aprender como fazer melhor. Para isso dispondo dos recursos materiais e humanos excepcionais, que nunca serão colocados à disposição da Amazônia se não sob essa ótica, com um slogan que bem podia ser: "Amazônia, a nossa Antártida".
Ficam estes devaneios de um caboclo sonhador aos participantes da 59ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, dispostos a encarar o desafio de fazer da Amazônia uma questão nacional.
(Por Lúcio Flávio Pinto*,
Adital, 18/07/2007)
* Jornalista