De 276 mil organizações não-governamentais que atuam no Brasil, 100 mil estão na Amazônia. Muitas delas têm interesses ocultos sobre a região, relacionados ao tráfico de drogas e de armas, lavagem de dinheiro, espionagem e biopirataria.
O general Maynard Marques Santa Rosa, secretário de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais do Ministério da Defesa, que apresentou esses dados à Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara, disse ter-se baseado nos arquivos dos serviços de inteligência das Forças Armadas. As informações, portanto, são oficiais, e têm sido repassadas aos órgãos policiais, responsáveis pela repressão aos atos ilícitos. Não provocaram efeitos práticos aparentes.
A questão é séria, mas precisa ser analisada com inteligência e realismo. Embora a estatística dificilmente possa ser considerada confiável, admita-se que haja realmente 276 mil ONGs no Brasil, número que também aparecia no cadastro da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais em 2002. A relação da Abong indica ainda que 29 mil dessas entidades recebiam recursos governamentais. A Polícia Federal e o Ministério da Defesa acrescentam que apenas 320 ONGs com atuação na Amazônia estão cadastradas junto ao governo brasileiro.
A conclusão imediata desses números é óbvia: o governo precisa montar um cadastro amplo e seguro das ONGs para poder discernir quem é quem num universo tão rarefeito e desigual, ao mesmo tempo em que poder controlar o uso de dinheiro público por essas organizações. Já está suficientemente provado que muitas ONGs não passam de fachada e biombo para a realização de interesse escusos ou ilegais, embora também se saiba que parcela significativa (se não predominante) delas não tem qualquer vida real.
O que não pode, porém, é o governo tatear às escuras nesse setor, nem se deixar levar por meras teorias conspirativas. O cadastro é fundamental. Estabelecida a norma e adotados os mecanismos necessários, a partir de certo prazo só poderiam continuar a funcionar no Brasil ONGs cadastradas num determinado escaninho da administração pública, que poderia ser o Ministério da Ciência e da Tecnologia, num departamento especializado para tratar com essas instituições. As ONGs que não se legalizassem seriam extintas e, caso funcionassem, fechadas. O cadastro seria um instrumento de informação a serviço do controle legal.
A repressão ou a punição, quando necessárias, seriam executadas na forma da lei. O único ilícito que ainda depende de regulamentação é a biopirataria. Infelizmente, esse trabalho fundamental tarda. Enquanto isso, o país vai perdendo material genético e verdadeiros cientistas são confundidos com contrabandistas.
Demais crimesQuanto aos demais crimes, todos estão perfeitamente capitulados. Se graves informações de que o governo dispõe não o levam a agir, a inércia ou omissão não resultam do vácuo legal, mas da ineficiência ou conivência da máquina pública. A ação excessiva e equivocada, por sua vez, é conseqüência de uma concepção distorcida e preconceituosa da Amazônia e do seu significado para a ciência, vista sempre pela ótica de teorias geopolíticas anti-conspirativas (e, por derivação ou mimetismo, também conspirativas).
Alegar que o governo nada poder fazer em função do artigo 5º, inciso XVII, da constituição federal, que considera plena a liberdade de associação, é sofismar: a liberdade só é reconhecida para fins lícitos. As ONGs são livres para atuar no Brasil se cumprirem as leis. Nada justifica reforma constitucional para restringi-las se tais restrições já existem na lei maior do país e há legislação comum a respeito. Se ela é inócua ou insuficiente, que os legisladores e os homens públicos providenciem a cobertura, sem precisar de restrições indevidas à liberdade de ação.
O problema é que a Amazônia, mesmo envolvendo dimensões de segurança nacional e de criminalidade, é, sobretudo, uma questão de conhecimento. Para responder aos seus desafios, teoria conspirativa, geopolítica e viés policial, mais do que insuficientes, são desaconselhados ou descabidos.
É impossível a vigilância e o controle absolutos sobre uma região tão vasta, se estendendo por dois terços ou quase metade do território nacional (conforme se considera a Amazônia Legal ou a Amazônia Clássica). Nela, atividades ilícitas sempre ocorrerão. O que se deve – e se pode – esperar é que esses ilícitos sejam de curta duração e não se tornem impunes. São essas as duas marcas da soberania nacional sobre o espaço amazônico.
Mas o exercício da vontade resulta do saber, que só existe com ciência, tecnologia e educação, como impulsionadores diretos, e condições de vida, como a moldura elucidativa, a pré-condição básica. Ao invés de ser confinada a arquivos secretos e drenar seu conteúdo para a sociedade em conta-gotas, usando de acordo com determinadas circunstâncias e interesses, a informação sobre a Amazônia tem que ser escancarada, debatida ao ar livre, levada ao aprofundamento em todos os ambientes, discutida com o propósito de disseminá-la enquanto é testada. Não pode haver segredos científicos em relação à Amazônia. Ao menos não da parte do agente público, seja ele servidor do governo ou qualquer personagem interessado na sorte da região.
O domínio efetivo sobre a Amazônia, independentemente de nela atuarem ou não as ONGs ou de fazerem ou não o que dizem, só será possível pelo país (e também pelos amazônidas) se, ao invés de continuarem a manifestar suspeitas apenas superficiais ou suscitar teorias sem pernas, eles chamarem à fala os temas e as pessoas da região, esclarecendo o que fazem e o que pretendem dela extrair através do critério da verdade, que é o da demonstração.
A Amazônia só será uma questão nacional para valer – e para valer certo, positivamente – se nela a prioridade for substituir a escuridão e a névoa dos preconceitos e suposições pela luz do conhecimento, a arma mais eficaz de que dispõe a humanidade para vencer desafios. Se não houver esse compromisso, caminharemos em círculos ou seguindo pistas falsas, ainda que pareçam conduzir a monstros hostis.
Do lado de fora o que não falta é cobiça e apetite sobre a Amazônia. Esse é um dado concreto, que pode ser ou não lesivo e mesmo letal. O outro dado, o que falta, é o interno: o verdadeiro conhecimento dos brasileiros e dos amazônidas sobre a Amazônia; que não virá do nada, nem da eterna desconfiança, incapaz de dar o passo necessário ao esclarecimento. O que temos hoje na região, em matéria de ciência e tecnologia, de conhecimento e revelação, é um pouco mais do que o nada diante da enormidade da tarefa que a Amazônia nos impõe.
(Por Lúcio Flávio Pinto,
Jornal Pessoal, 16/07/2007)
Lúcio Flávio Pinto é editor do Jornal Pessoal