"Quando os carrinheiros passavam na minha rua, eu tinha pena deles. Quando eu descobri o que eles fazem e o que eu faço, que jogava o lixo de qualquer jeito em qualquer lugar, comecei a ter pena de mim", disse uma senhora de Curitiba anos atrás.
Divonsir é um carrinheiro curitibano, e contou sua experiência no Encontro macro-regional Sul da Rede TALHER de Educação Cidadã. Ele faz parte de uma cooperativa que recolhe plástico, alumínio, vidros e sucatas variadas das ruas de Curitiba com o carrinho puxado por ele mesmo todos os dias: "Nós nos organizamos, fazemos até o nosso próprio pagamento". São 5 Associações de carrinheiros na capital paranaense, que fazem a coleta, separação de material, depois a venda de tudo que recolhem e, finalmente, partilham os ganhos entre todos.
Segundo a prefeitura de Curitiba, eles são 5 mil, mas, segundo Divonsir e estimativas dos próprios e suas organizações, eles são 15 mil, só em Curitiba. Ou seja, uma categoria de trabalhadores que, em número, se iguala aos bancários e aos metalúrgicos, outrora entre as principais e mais numerosas categorias profissionais.
Cabem várias analises e reflexões a partir dos carrinheiros, bem como dos catadores e recicladores: os novos movimentos e organizações sociais surgidos nos últimos anos, a vez e voz dos de baixo e sua força política, a relação com o meio ambiente e a ecologia, a complexidade da questão urbana.
Nos anos 1970 e 1980, algumas categorias profissionais e sociais dominavam o cenário político-social e estavam na linha de frente das classes trabalhadoras: metalúrgicos, bancários, funcionários públicos e, um pouco mais tarde, agricultores familiares e os sem-terra. Suas lutas, greves, ocupações e mobilizações tornavam presente e atuante a classe trabalhadora nas lutas reivindicatórias, na democratização da sociedade brasileira, nas Diretas-Já, na construção das grandes organizações nacionais como a CUT, o MST e o Partido dos Trabalhadores, bem como na conquista dos primeiros governos populares.
Os anos 1990 e os ventos neoliberais, com exceções, diminuíram o peso político destas categorias, por um lado pela drástica diminuição de quantidade (metalúrgicos e bancários estão numericamente reduzidos à metade). Por outro, o medo do desemprego e a institucionalização crescente de entidades e movimentos, alguns ou muitos perderam também o horizonte de um projeto de ruptura e mudança.
Com as privatizações, a ascensão do capitalismo financeiro, a partir do Estado neoliberal, e a ausência de um crescimento econômico que absorvesse a juventude no mercado de trabalho e empregasse os de mais idade, houve necessidade da busca de sobrevivência de quem ficou sem emprego e sem renda. No rastro, cresce a economia informal, surgem novas categorias sociais que, aos poucos, aparecem no cenário das cidades, especialmente as metrópoles, começam a se organizar e a ganhar visibilidade pública.
Hoje são milhares ou milhões. Governos locais são obrigados a reconhecê-los. ONGs, pastorais e diferentes instituições se voltam para sua existência. Os carrinheiros são força política, são cidadãos, são trabalhadores. Que se juntam a outros milhares ou milhões de empobrecidos se organizando de formas diferentes em todo Brasil: na economia solidária, nos grupos de geração de trabalho e renda, nos Clubes de Troca, em Cooperativas e Associações, nas Padarias Comunitárias. Já não são apenas os sem-terra que lutam, fazem mobilizações, reivindicam direitos e proteção social, reconhecimento legal e político. Há novos atores, outras vozes buscando espaço e dizendo de sua presença e existência.
Surgem no meio do urbano que, em décadas passadas, sofreu as conseqüências e o inchaço provocados pelo êxodo rural, cidades grandes e médias cheias de pobreza, vilas e favelas, às vezes à beira da explosão social, e que até hoje ainda não têm canais expressivos e próprios de organização, de acordo com sua realidade complexa e diversificada. A esquerda e os setores populares, regra geral, ainda não acharam os melhores caminhos de organização dos mais pobres entre os pobres nos meios urbanos, incluídos aí os milhões de jovens, e alternativas de vida que vão além da mera sobrevivência.
No caso dos carrinheiros, catadores e recicladores, como sempre alerta o Irmão Antônio Cecchin, eles são profetas da ecologia. Eles separam o lixo, eles limpam as ruas, eles levam ao reaproveitamento dos materiais jogados fora e da sucata. Eles chegaram antes dos poderes locais e suas coletas seletivas, que só recentemente se tornaram ou ainda estão se tornando políticas públicas. Antes das donas de casa, eles separam e reciclam o lixo. Por isso, são verdadeiros profetas ecológicos que, com seus carrinhos, andam pelas ruas denunciando o consumismo e a necessidade de sensibilizar os consumidores, assim como, quando crianças, passávamos nossas roupas ao irmão mais novo ou fazíamos uma meia sola nos sapatos, que duravam anos. Organizam-se de forma autônoma, retomam valores e práticas que muitos movimentos e organizações perderam quando se tornaram grandes instituições: a forma cooperativa e solidária de se organizar, o trabalho coletivo, valores e práticas desprezadas pelo capitalismo individualista, concentrador de renda, riqueza e poder.
Como disse João Santiago, da equipe nacional do TALHER: "Nós não entramos no mundo dos carrinheiros; eles é que entraram no nosso". Os carrinheiros tornaram-se visíveis, não mais na paisagem urbana como os que atrapalham os carros e o trânsito, mas como quem é um sinal, como quem ajuda a mudar o mundo. O desafio é torná-los, mais que sobreviventes, sujeitos organizados e conscientes, protagonistas no desafio histórico de transformar o Brasil.
(Por Selvino Heck*,
Adital, 13/07/2007)
* Assessor Especial do Presidente da República. Fundador e Coord. do Movimento Fé e Política